Foto: Russia - CrazyRussian
“Não descubras o teu peito,
por maior que seja a dor –
quem o seu peito descobre,
de si mesmo é traidor.”
Não me lembro bem da primeira vez que ouvi essa quadra - tão cheia de sabedoria - mas lembro-me, sim, muito bem, quando comecei a entender-lhe o significado.
“Se os olhos são a janela da alma, o segredo é a alma da verdade”, dizia-me também a Sra. Camila, a Guardadora de Mistérios. E continuava: “Cada um tem a sua própria e íntima verdade... Se a confiar totalmente aos outros, vai, ao mesmo tempo, expor-se a julgamentos e impor-se como juiz. Há que nunca perder o mistério dos pequenos silêncios – os pequenos silêncios são irmãos do encanto das grandes palavras.”.
A Sra. Camila era a velhinha mais velhinha da aldeia. Era o que eu achava. O seu rosto miúdo, emoldurado pelos finíssimos cabelos tecidos da primeira luz das manhãs, era um campo sagrado: continha vinhedos de outono, sulcos geados de sementeiras, vestígios de ninhos de andorinhas, trigais já segados de pão, ribeiros secos pelos desertos da vida. Boca, quase nenhuma, sugada pela falta de dentes, e olhos feitos de água fresca – dois poços fundos, insondáveis, porém saciantes, retemperadores, cheios de paz e sabedoria. E de mistérios. Todo o conjunto, toda a morfologia facial da Sra. Camila, era uma página... não! – um livro inteiro, não só de Geografia – física e humana – mas também de História.
Histórias. A Sra. Camila, sabia contá-las como ninguém! (deixaram-se iludir por aquilo de “boca, quase nenhuma” e “guardadora-de-segredos-irmã-do-silêncio”?... ah, desenganem-se! – ela, apesar de saber imensamente mais do que me contava, era um livro, eu não disse...?! - da sua boca pequena e flexível, como ramo de árvore ainda tenra, voavam bandos de palavras que sabiam todos os ninhos da minha imaginação!)
Aí é que está – a minha imaginação: era nela que eu chocava os mistérios. Era nela que guardava os segredos que ia descobrindo, à medida que iam nascendo as pequenas certezas que lá cabiam. E os meus próprios mistérios, novinhos em folha. Bastantes, até. Mas, claro, não tantos como os que a Sra. Camila trazia nos olhos. Ah, não!...
Ela era uma verdadeira Guardadora de Mistérios. E repetia-me, entre histórias de faz-de-conta, e contas do seu rosário: “Sabes, Teresinha, devemos deixar que os outros granjeiem um quinhão de terra, no lameiro que nos pertencer por direito. Mas só se o quiserem, se o merecerem e se tu achares que eles têm necessidade disso para sobreviver. E só lhes permitas o quinhão bastante para essa sobrevivência! O melhor, o maior, deixa para ti – nunca se sabe se quem te renda, um dia te rasga. E nunca se sabe se esse que te rasga, ou outro que venha, um dia, não precisará que tu o remendes... com a grandeza da tua alma e a garantia da tua granja.”
Eram palavras algo confusas para eu entender, na altura. Mas ia percebendo uma verdade: os mistérios são como ninhos – é bom descobri-los, saber que estão lá, no alto daquela árvore, mas o segredo de todas as primaveras é respeitar-lhes a arquitetura, ter cautela, não espalhar a notícia; cuidar de manter os ramos intactos e a peugada despercebida e esperar que os ovinhos se tornem passarinhos – guardadores do grande mistério do voo.
Teresa Teixeira