20.10.17

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Foto: Human-rights - Darwin Laganzon

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê a igualdade de direitos para toda e qualquer pessoa, independentemente da sua condição ou proveniência. Cada linha dos seus artigos nasceu do comprometimento de vários Estados membros em cooperação com a Organização das Nações Unidas, proclamando o respeito universal e efetivo dos direitos do Homem e das suas liberdades fundamentais, sejam estas económicas, políticas ou sociais.

 

A minha amiga Susana, mulher extraordinária, teria muito a dizer sobre esta coisa poética da igualdade de acesso e de direitos das pessoas ditas portadoras de deficiência. Nas algumas décadas que já viveu, sofreu na pele a injustiça de uma sociedade patologicamente afetada, impregnada de preconceito, incapaz de ver para lá da sua própria perceção dos outros e das coisas. Se ela gostaria de poder fazer tudo que o comum mortal faz, sem depender de ninguém e ser, simplesmente, quem nasceu para ser? Não tenho dúvidas que sim, tão pouco a tremenda lucidez da Susana me permitiria dizer o contrário. Ninguém, para além dela e dos que partilham desafios semelhantes, sabe o que é viver segregado, aparentemente incluído mas permanentemente em luta, pelo simples direito a existir com toda a dignidade que merece e com toda a coragem que lhe corre nas veias – podia narrar, horas a fio, as muitas coisas fantásticas que ela já fez e que muitos de nós, sem qualquer (aparente) limitação, jamais fariam. Podia descrever, sem ter de florear nem um bocadinho, a força com que se bate todos os dias da sua vida por coisas que tomamos como garantidas e que não valorizamos sequer.

Pode até parecer que é à sua aparente condição física a que me remeto mas, na realidade, não pretendo sequer perder-me nesses pormenores. Quanto mais a conheci, mais me distanciei do que a tornava diferente e mais nitidamente entendi o conceito da verdadeira deficiência. Claramente, não era aquilo que a colocava numa cadeira de rodas mas sim o que lhe era oferecido, numa base regular, pelos que deviam protegê-la. A verdadeira deficiência estava nos que “se envergonhavam” de ir com ela à rua (e lho diziam, com estas mesmas palavras), dos que lhe lembravam todas as coisas que ela não podia fazer, dos que, partilhando o seu sangue, a rotulavam com uma designação que, afinal, nunca lhe pertenceu. Como deve ter doído, mais do que qualquer limitação física (sobretudo, aos olhos dos outros), a maldade dos “seus”, tão cristã (leia-se: levada a cabo por atos, palavras e omissões). Como pode um Ser feito de amor ser um alvo tão fácil?

Todavia, nesta verdade dolorosa, feita de muitos momentos de revolta, não sintam pena da Susana. No seu anonimato, ironicamente, e apesar dos muitos desafios que ainda enfrenta, já viveu mais do que muitos de nós viveram ou viverão. Ser feliz não é a ausência de obstáculos, de problemas, de grandes montanhas a transpor, mas uma escolha, obstinada e diária de, apesar de tudo isso, fazer o melhor de cada dia. É assim que a Susana vive a vida. Há pelo menos quinze anos, testemunhei a audácia desta corajosa mulher que saiu da casa materna solteira e voltou casada, contra tudo e contra todos; e é, desde então, amada, por um marido com um M enorme, por tudo aquilo que ela realmente é: linda, inteligente, criativa, ousada, partilhando, sempre, um sorriso belíssimo com quem tem o privilégio de a conhecer. Levante a mão quem conheceu o amor da sua vida, quem abraça um ser que ama e que lhe devolve amor, todos os dias, durante pelo menos década e meia. Incondicionalmente. Não tenham pena de quem nos lembra os nossos medos, as nossas limitações. Tenham esperança. Desejem, no mínimo, o mesmo.

 

Quero acreditar que caminhamos para um dia de verdadeira equidade, para uma sociedade que inclua todos os seus cidadãos, com dignidade, com respeito, valorizando o que cada ser humano tem de extraordinário. Vejo nas pequenas coisas grandes vitórias e, parte de mim, rejubila. A outra parte, lembra a “minha” Susana, as outras e outros tantos seres como ela, e o seu (ainda demasiado intenso) sofrimento pela inacessibilidade criada, sobretudo, pelas mentes pequenas com demasiado poder. Pelas vozes que os calam, gritando palavras como “verdade, justiça, progresso, inclusão, igualdade”, desprovidas de qualquer significado. Vozes que silenciam os únicos com legitimidade para falar, os que sentem na pele as tais “mudanças miraculosas apregoadas e que colocam todo o cidadão a viver uma vidinha sã e feliz” e que gritariam, sim, a angústia da ignorância alheia, a falta de meios, de condições, de corações preparados e de mãos dadas com a ciência, a acutilância de quem se acha imune ao sofrimento. “Está tudo uma maravilha, está cada vez melhor”, dizem. Outros que não quem de direito, note-se.

Reitero: quero acreditar que caminhamos num sentido mais positivo e humano mas sei que, enquanto andamos para trás e para a frente, regidos por leis bacocas e inviáveis, muitos sofrem. Enquanto me sento para redigir estas linhas, perde-se o potencial humano de tanta gente extraordinária neste planeta. Perde a sociedade que não percebe a singularidade da Susana, e de todos aqueles que considera diferentes, matando o seu potencial. Enquanto se luta por pôr em prática as verdadeiras leis da Equidade, talvez valha a pena investir na intervenção junto dos ditos normais para quem a normatividade é, afinal, uma muleta frágil e sustentada por uma visão limitada e desadaptativa, baseada no medo e na ignorância. São esses os verdadeiros deficientes: os cruéis, os preconceituosos, os críticos de tudo e de todos, os patologicamente insanos, aqueles para quem a Declaração Universal dos Direitos Humanos é apenas uma chalaça de folhetim. É esta a verdadeira deficiência da sociedade. É aqui que tudo começa. É aqui, e em cada um de nós, que deve terminar.

Desculpa, querida Susana, por viveres num mundo que ainda não te merece e que, mesmo assim, tornas tão mais belo pela tua simples existência. Espero, um dia, sermos dignos de gente tão especial quanto tu.

 

Alexandra Vaz

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 07:30  Comentar

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