Foto: Model – Engin Akyurt
Na cadência dos dias, não olho para trás com vontade de retroceder no calendário.
Quando digo isto, não raras vezes, alguém me devolve “Ah, pois, ainda não te bateu, foi isso… Quando te der, ainda vai ser pior do que a mim, vai ser assim, de repente, mas vai chegar, não tenhas dúvidas…”. Parece que esta coisa do envelhecer não está a funcionar comigo como “deveria”. Nunca senti “quem me dera ter vinte anos e saber o que sei hoje” – dizem-me ser o sinal inequívoco do “princípio do fim”.
Olho à minha volta, oiço os amigos, as meias conversas no café, no trabalho e nas ruas da cidade: depois de (in)determinada idade, um generoso número de pessoas parece abraçar um saudosismo doentio, repetido como um mantra, que as mantém reféns de memórias irrepetíveis. Como se cada dia mais nas suas vidas fosse uma sentença de morte e não uma bênção. Nem se dão conta do maior estrago de todos: na dormência autoimposta, perdido fica o dia de hoje e todos os que se lhe seguem, em nome dos dias idos. Das coisas mais tristes a que assisto. E eles repetem, “vai chegar, ah vai vai... Gostas de envelhecer, pois claro, andas é iludida… Olha que já não tens muito mais tempo para continuares a pensar que és nova e com saúde e que vais sempre viver com essa ligeireza…”.
Penso com frequência quando chegará o meu dia. O tal dia, o tal momento, em que também eu passarei a circular em sentido contrário na escada rolante. Mas ainda não chegou esse dia. Cada nova aurora impele-me a avançar, mesmo quando me levanto sem força para sonhar. Não olho para trás, não me dou a cenários do “…e se…”. Tenho outras formas de me atormentar mas, esta, não faz parte do meu cardápio. Sei hoje que existe uma lição a tirar e, consequentemente, uma aprendizagem de tudo o que já vivi. Até daquilo que quase me destruiu. Profunda gratidão pelas lições de vida que tenho recebido, mas a coisa nenhuma, boa ou má, eu gostaria de voltar. Nenhuma delas faria qualquer sentido hoje, por isso, não lhes dou muito tempo dentro de mim.
Quanto mais o tempo passa, quanto mais a minha consciência caminha a par e passo com o Amor-próprio, mais insuportáveis se tornam as relações de dependência que alimentei durante anos, com pessoas que nunca de mim cuidaram. Uma a uma, retiro-as da bagagem, sem as desprimorar, e permito-me caminhar mais leve. Fecho ciclos, deixo partir quem não está comigo por mim, mas porque precisa de mim. Gente que enaltece a minha força e a minha resiliência, enquanto cronometra o tempo que demoro a cair mas que, nas vezes em que me estendi ao comprido, não esteve lá para mim. É preciso deixar esse espaço, na alma e no coração, para aquilo que nos faz felizes, para aqueles que nunca de nós sairão, ainda que a vida os leve. Porque há gente verdadeira e integralmente insubstituível. Os que amo, nunca de mim partirão. É no amor sem fim que sinto a Imortalidade. É, com todos os que amo que hoje caminho, mais rica, mais forte. É por eles que faz sentido agradecer cada dia a mais que vivo.
Não tenho saudades de ninguém com quem ousei, um dia, sonhar construir uma vida porque o meu coração sabe que não era suposto acontecer dessa forma. Agradeço o que me foi dado mas não quero reviver nenhuma história. Entre uma ou outra página mais indigesta, folheio o livro da minha vida sem angústia ou saudosismos, sem sentir que “os melhores dias da minha vida já passaram” ou “se eu pensar neles até à exaustão, eles vão voltar“. Não os desejo de volta. Já vivi dias extraordinários, verdadeiramente mágicos, mas sinto que alguns dos melhores dias da minha vida ainda estão por acontecer. Cada dia tem sido único e irrepetível.
Tenho saudades daquilo que não vivi, das formas que encaixam em mim como uma luva mas que ainda não têm contornos definidos. Tenho saudade da essência da minha pele, antes da amnésia da educação. Isso a que chamais saudade, e que vos atira lá para trás, a mim move-me para a frente como uma catapulta. É ela que me guia, quando não vejo um palmo à frente do nariz, e me lembra o que é importante. Não tenho tempo para arrependimentos ou agonias prolongadas. Não posso caminhar para trás, já não sou a pessoa que um dia fui. Honro os dias que passaram, vivendo o dia de hoje com gratidão. É assim que descubro quem sou, nas nuances das pequenas/grandes coisas que tenho na minha vida, um dia atrás do outro.
Saudade é o que sinto aqui, agora, no alto desta montanha, abraçada pelo desconhecido e pelos sons da vida à minha volta. É este calor no coração, esta força que me faz fechar os olhos, abrir os braços ao mundo e sentir-me em casa, dentro de mim. Muitos dos meus dias serão vividos pela metade, soube-o à medida que a vida me foi levando os que amo. Sei também que nenhum dia vai sobrar no fim. É isto que a saudade me lembra. É isto que recuso esquecer.
Alexandra Vaz