28.8.17

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Foto: Camera – Th G

 

Há momentos, generalizo assim porque acredito que acontece com toda a gente, em que não se sabe porquê, mas ficam-nos gravados para sempre, alguns constantemente, outros ativados de forma intermitente, de longe em longe. Momentos para os quais não é imediata a razão para tal distinção, de tão singelos, simples, vulgares que são. Haverá uma teia, de fios mais ou menos visíveis que resistem na memória, no tempo.

 

Há momentos em que é evidente porque os sabemos situar na circunstância, o quê, quem e onde. Usando as frases batidas e dependendo das idades de cada um: Onde estavas no “25 de abril”? O que fazíamos quando soubemos e percebemos o que estava a acontecer no “11 de setembro” em NY, nas torres gémeas...

Estes são tão chocantes, envolventes, positiva ou horrivelmente, que nem temos tempo ou capacidade para pensar que estamos com a História a passar frente aos nossos olhos e que nos vamos lembrar deles enquanto tivermos os nexos elétricos da nossa memória em funcionamento. Estamos, na ocasião, totalmente absorvidos, imbuídos daquilo que acontece e que, seja mais longe ou mais perto, nos toca, choca e espanta.

 

Depois há as situações que nos surpreendem, melhor, superam as expetativas elevadas para as quais vamos, ou então acontecem de imprevisto e que nos são tão agradáveis que nos fazem pensar de forma grata na vida, agradecer quem somos e com quem estamos. Perante elas e no seu decurso, como que parte de nós se destaca, para, observa, prenhe de satisfação, alegria, entusiasmo, olha para o “espetáculo” em cena e diz-nos: aqui está algo que vou gravar, mais tarde vou recordar, para memória futura!

Muitas vezes esta memória não permanece vívida, desvanece-se e não acontece o que nós prevíamos, o momento não se tornou, de facto, inesquecível.

Mas também são eles, o conjunto desses momentos, meio enevoados, que nos constroem, ligam os blocos que edificam a nossa vida, a argamassam.

É uma saudade, sem rosto, sem contornos ou com contornos difusos, indefinidos, mas sem a qual nós não seríamos integralmente nós. E, sim, a saudade é mais dos momentos felizes, de alegria transbordante, mas, com o longo prazo que já começo a experienciar, digo que também podemos ter saudade, sem ser incongruentes, de momentos tristes, infelizes. A vida é mais de emoções que de razões, será isso.

 

Eu sou a minha saudade (também pode ser no plural) mais o que me espera e procuro no futuro. Um filme, uma sequência de fotos, com muitos flashbacks, saudades, memórias.

 

Jorge Saraiva

 

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25.8.17

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Foto: Coffer - Anna

 

Ela vai e vem, percorrendo a nossa vida; é assim o movimento da saudade. Por ela somos levados ao passado, a um momento temporal determinado, que nos permite recordar o que de bom se viveu, ou do quanto se perdeu.

A saudade manifesta-se e sente-se no presente quando a memória a chama a si para fazer reviver o passado. É natural o despertar deste sentimento que nos revela, não raras vezes, uma reconfortante e suave melancolia dos gratos e felizes momentos vividos. Ela, que não deve ser obsessiva, é recorrente, na medida em que se repete, vai e volta, regressando sempre ao “baú” das nossas memórias.

Ela, a saudade, acaba por ser, principalmente, em finais de vida, a companheira mais fiel dos que não têm companhia e por isso, se refugiam num silêncio cúmplice. É nessa relação de cumplicidade, nesse estado de alma, em paz interior, que melhor se convive com a saudade. E é esta que nos ajuda a recordar o que de bom se viveu. Ora, como o diz o povo: “recordar é viver”, a que se pode acrescentar, quando há uma doce e inesquecível saudade, que, recordando momentos inesquecíveis, vive-se duas vezes.

 

José Azevedo

 

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23.8.17

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Foto: Playground - Maria

 

Para quê sentir vontade de reviver momentos que já não voltam, com quem já não se encontra fisicamente entre nós, em sítios que já não são os mesmos?

Este verão voltei à terra da minha infância.

O parque onde brinquei já não existe. Ficou apenas a área vazia de terreno. Os prédios enormes continuam lá, mas não vi ninguém, nenhuma criança a brincar ou a comprar um pacote de leite na loja do bairro. Onde estão? Elas devem existir pois, à janela daquilo que foi em tempos a nossa sala de jantar, estava um jovem a sacudir a toalha. Fitei-o, bem como ao interior da casa. Ele reparou e fitou-me. Mal sabe ele que ali passei toda a minha infância e adolescência. Que ali me chamavam aos berros quando era para ir almoçar ou jantar, depois de umas boas horas a brincar na rua sozinha com os meus 30 amigos do bairro.

Logo ao sair do carro, encontrei o Senhor da Padaria e a Mãe de uma das amigas. Iguais! Algo passou por ali, arrasou o parque mas deixou as pessoas iguais! “Os sobreviventes”, como o Senhor da Padaria disse.

Fomos convidados a visitar o centro comercial que, de dois andares de lojas, restam apenas três lojas abertas. Ao entrar no café, o Senhor do Café reconheceu-me e eu vi isso nos olhos dele. “Mal olhei para os teus olhos pensei: eu conheço aqueles olhos.”. Pois é... Há quem diga que pelos olhos se vê a alma e a minha alma é a mesma.

 

Tudo muda. As casas, as pessoas que lá habitam, a nossa estatura física, as pessoas que connosco convivem, a nossa própria família também muda. A alma não. O nosso interior e o que nos formou como pessoas, isso não muda. Já cá está carimbado e para sempre.

Depois de despedidas secas, vazias, lá fomos embora, com a sensação de que aquilo é uma realidade que já não existe pois o lugar é aquele, aqueles três comerciantes são os mesmos e penso que serão sempre, mas a vida real é outra. Serão eles os três anjos que nos fazem recordar o que nos tornou pessoas? Não estava mesmo lá mais ninguém...

Para quê saudades se a vida já não tem lugar? Nós fizemos desaparecer esse lugar...

 

Sónia Abrantes

 

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21.8.17

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Foto: People – Stock Snap

 

Chega-me com o perfume das noites quentes de verão, assim bem cheirosas porque plantas e flores, sem pudor, se despem das suas fragrâncias. Enchem o ar e levam uma direção. Não é um lugar qualquer aquele para onde vão ou de onde vêm e para o qual eu me deixo levar; é um lugar longínquo, mas que o cheiro a calor aproxima. Vou pela avenida junto ao mar até à Ponta Vermelha onde, por certo encontrarei alguém para uma partida no minigolfe. Desafio o vento que abana as palmeiras da marginal a fazer coisa idêntica nos meus cabelos, dou o exemplo passando os dedos pelo meio da cabeleira e levantando-a até ao cocuruto. A pele recebe uma lufada de ar e fica menos pegajosa, mas por pouco tempo. Repito o gesto vezes sem conta. Não está ninguém conhecido na Ponta Vermelha. Vou até à esplanada do Ciao. Peço uma cassata que não saboreio. Dizem que é dos melhores gelados da cidade, mas esqueço-me dele na taça de vidro; peço-o porque faz parte do ritual. O calor deforma-o rapidamente e a bola colorida passou a um líquido de qualidade duvidosa. Vão chegando amigos e com eles as histórias que têm para contar. O Dr. Óscar Monteiro é dos mais eloquentes a contar as peripécias de médico do antes e pós-independência. O humor que empresta aos dizeres faz do nada uma boa conversa. Tive notícias de que morreu, e que outros também já partiram. A bola de gelado não voltará a derreter à espera dos meus amigos e eu, mesmo querendo – e como quero – não conseguirei devolver à esplanada do Ciao a vida de outros tempos.

 

Chega-me com o pão quente pingado de mel. Fino e transparente, cor de ouro, combinado com o pão acabado de sair do forno, faz da simplicidade um manjar de réis. Nunca se esquece de, em cada fornada, fazer um pão pequeno só para mim. Ouço-a dizer com carinho: “uma bolinha pequena para gente pequena”. Querida avó, que bem que me sabia esta e tantas outras das tuas atenções. Como gostaria de poder dizer-te o quanto admirava essa tua magia de mimares tanto com tão pouco.

 

Chega-me com o choro dum bebé. Sinto nos braços o teu corpo frágil abandonado aos meus cuidados e na ponta dos dedos o toque da tua pele macia. O prazer de me entregar ao papel de mãe foi muitas vezes abafado por receios e dúvidas. Gastei as páginas do “Meu Filho Meu Tesouro”, de Benjamin Spock, na tentativa desesperada de aprender a educar. Hoje, teria mais serenidade e saberia retirar mais gozo dessa nobre função. Mas, a falta de experiência de então, não rouba o carinho com que recordo essa nossa fase de crescimento, tua, na direção da infância e da adolescência, minha, na direção da maturidade.

 

Chega-me com o abraço que me dás. Cativaste-me assim, num abraço sentido.

 

Chega-me com as inquietações amargas do passado, com a solidão, a alegria e a tristeza do presente, com as fantasias do futuro.

 

Chega-me com a perda de conhecidos, amigos e familiares.

 

Chega-me com pormenores que, de tão insignificantes, só não escapam aos meus sensores.

 

Chega-me do nada e sem saber porquê, mas agora e sempre, rendo-me a este abusivo e posseiro sentimento de saudade.

 

Cidália Carvalho

 

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18.8.17

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Foto: Girls – Cheryl Holt

 

Lembro-me de a ver na piscina quando era pequenina; de interceder a nosso favor para podermos sair de casa; de pedir chocolate à mãe para todas; dos momentos em que contava aos pais as nossas aventuras de adolescentes na ausência deles; do cheiro; da saia curta castanha e top amarelo que a faziam ainda mais bonita; do beijo carinhoso; de a ver comer, elogiar e criticar negativamente a comida (não gostava de empadão); do boneco que tratava como se fosse seu doente e das receitas de ben-u-ron que lhe prescrevia numa folha de um bloco A5; de a ver por a mesa com toda a parcimónia; das canções que cantava num inglês imperfeito (gostava da Tina Turner); da sua memória impressionante; da palavra frigorífico, entre outras, que não conseguia pronunciar bem; dos momentos da sua higiene, que inicialmente fazia sozinha, acompanhados de todos os cremes; de debitar a programação da televisão como se estivesse a ler por qualquer lado; dos elogios que nos fazia quando estávamos “bonitas”; dos pedidos que fazia à mãe para lhe dar um cafezinho; da cumplicidade com o pai e a mãe; da felicidade que demonstrava quando chegávamos ao fim de semana… Até tenho saudade dos momentos tardios mais agressivos, mas inconscientes. Já lá vão alguns anos e, neste momento, restam as recordações e a saudade (a saudade eu não sei definir). É assim…

 

Ermelinda Macedo

 

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16.8.17

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Foto: Womens – Engin Akyurt

 

Saudade. Uma mera palavra, plena em substância. Uma palavra tão nossa, tão lusitana. E essa portugalidade inerente é transposta para o mundo, refugiando-se nos recantos das almas humanas, além-fronteiras. Ela sussurra-nos baixinho aquando o repassar das memórias de outrora que marcaram a existência, crescendo connosco e com todos aqueles e tudo aquilo que é parte de nós.

E se um pedaço se arranca ou o tempo avança, albergando vazios na sua travessia, a saudade aflora, relembrando-nos que os sabores agridoces que a vida apresenta são porção inevitável do caminho. Sinais inequívocos de que algo de positivo ocorreu, de que algo ou alguém importou, e isso nunca se perderá. Não na essência, no conteúdo… Só na forma. Serão tesouros guardados, a todo momento passíveis de serem resgatados.

E no decorrer da vida que sempre seguirá, naqueles instantes em que se desvanecem as barreiras e se denunciam as fragilidades, ali estará a saudade, bem ao lado do coração, lembrando que o que houve será pilar para o que haverá.

 

Sara Silva

 

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14.8.17

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Foto: Birdie – Shakti Shiva

 

- Eu tenho sempre os mesmos pesadelos, que se repetem noite após noite numa sequência que não tem fim. E por vezes volto a eles durante o dia, como se o pesadelo continuasse quando estou acordado, como que tomando conta de mim, por inteiro.

Rodrigo parou e pousou o olhar sobre a mesa, mesmo ao lado do novo copo de cerveja que o empregado trouxera uns segundos antes.

- E sonhos? Tens sonhos?

Juliana procurou assim abrir uma porta, uma janela, qualquer espaço que fosse permeável à luz, na tentativa de aliviar o semblante de Rodrigo.

- Não! Quer dizer, dos sonhos e dos pesadelos só temos as memórias que se agarram a nós, atravessam a noite e acordam connosco, coladas por dentro. Desde que esta sequência de pesadelos se iniciou, não tenho memória de qualquer sonho, não sei se sonho ou não, sei que não tenho memórias desse tipo.

- Mas, de que matéria são feitos os teus pesadelos?

- Em verdade, não sei do que são feitos, mas fazem-me viver atormentado.

- Mas isso é terrível! Conta, por favor!

Rodrigo suspirou, pegou no copo e bebeu dois longos golos. Pousou os braços sobre os braços da cadeira.

- Como expliquei, são uma sequência, todos os dias é um e apenas um, mas sucedem-se e repetem-se. Quando chega ao último, volta ao início; mas a sequência não é sempre a mesma, ou seja, de uma série para a outra, alguns pesadelos trocam de posição na sequência.

Juliana assentia com a cabeça, completamente focada nas palavras de Rodrigo, que continuou:

- Num deles fico desempregado. Chego pela manhã à escola e o diretor chama-me ao gabinete, onde já estão alguns dos meus colegas e o meu avó paterno a cofiar o longo bigode e com um sorriso (ele nunca sorria). E o diretor despede-me porque não preenchi uns formulários e preenchi outros de forma indevida ou errada. Eu saio do gabinete do diretor e estou de imediato no cimo de uma falésia, com sol mas vento forte. Sinto-me humilhado, com vergonha e com medo de cair ao mar.

- E é tudo?

- Sim, neste é tudo. Num outro, regresso a casa depois das aulas e ao entrar na rua, um colega da escola primária, que não vejo há mais de quarenta anos, mete-se à frente do carro (eu vou sempre a pé para a escola que fica a dois quarteirões) e grita que eu não deveria estar ali àquela hora. Continuo e quando chego à minha casa, que é uma moradia (eu moro num andar), vejo que ardeu, completamente. As pessoas passam na rua, indiferentes. Fico no carro a chorar, a pensar onde irei dormir, onde irei morar, como me arranjarei sem as minhas coisas, e reparo que do céu caem um paralelepípedos de pedra, gigantescos, cada um com um cordel enrolado à sua volta e que se vai desenrolando à medida que a pedra cai. São muitas destas pedras que caiem do céu ao mesmo tempo e eu tenho medo que uma delas me esmague dentro do carro, mas as pedras estão sempre a cair, a desenrolar o cordel e, de facto, não vejo nenhuma delas a chegar ao chão.

- E mais?

Juliana engole em seco.

- Num terceiro, está um tipo de fato e gravata, penteadinho, numa espécie de palco que apenas tem lugar para ele, com um microfone à frente, e ele diz: “Nesta tragédia, houve pelo menos uma dezena de pessoas que se suicidaram enquanto tentavam fugir, por não o conseguirem fazer, encurralados pelas chamas!”. Um outro, vestido e penteado como o primeiro, chega junto deste como que a voar, pois não tem palco, chão, para ele e diz-lhe ao ouvido, mas eu ouço, pois sou o único a assistir: “Sr. Primeiro-ministro, peço imensa desculpa mas, afinal, essa notícia não se confirma. Parece que morreram todos queimados a tentar fugir. Peço imensa desculpa.”. O que fazia o discurso diz então: “Porra, não me chame isso que já não sou! Oh Lopes, mas isso é uma merda, homem! Nem um suicídio… pequenino? E agora?”. O outro já lá não está. Então o discurso continua: “Portuguesas e portugueses, tenho de corrigir a informação que acabei de dar, pois afinal parece que não houve suicídios. Mas a culpa não é minha, é ali do Lopes, um tipo que até agora sempre mereceu a minha confiança. A culpa é dele; deve estar vendido ao governo. Eu sou responsável e, quando é preciso, dou a mão à palmatória.”. E aponta para mim e há minha volta está agora um mar de gente a olhar para mim e a gritar: “O Lopes é um traidor! Suicídio já!”. E eu deixo-me cair de joelhos e sinto-me culpado e com medo da multidão em fúria.

- Chamas-te Lopes?

- Eu não.

- E há mais?

Com a pergunta, Juliana avançou um pouco mais para Rodrigo, que em sua defesa bebeu mais um golo de cerveja.

- Neste, estou amarrado numa cadeira frente a uma televisão e só consigo mexer o indicador direito que tem ao seu alcance o botão que permite mudar de canal. Na televisão está a dar um programa daqueles de comentários aos jogos de futebol, com cobertura total e completa, antes, durante e depois do jogo, e eles dizem sempre as mesmas coisas e eu mudo de canal e é outro programa idêntico ao anterior, e volto a mudar de canal e é outro programa idêntico. A televisão tem 250 canais, ou melhor, 125 normais e 125 em réplica HD, todos a darem programas daqueles. Não me consigo libertar, não consigo respirar, sinto muito medo de perder a capacidade de pensar.

- Terrível!

Juliana acomodou-se melhor na cadeira.

- Noutro, estou a ler o jornal, que não tem letras, nem imagens – só o cabeçalho e folhas em branco, e ouço no rádio que o meu neto está desaparecido, que há suspeitas de rapto. Pouso o jornal e estou no centro de uma cidade antiga. Começo a correr pelas ruas estreitas e cheias de pessoas, procurando o meu neto, e à medida que corro as ruas vão ficando cada vez mais estreitas, até que já não consigo progredir pois a distância entre as paredes, ou seja a largura das ruas, é tão pequena que não consigo passar. Então paro e junto a mim, na montra de uma loja, está uma televisão ligada e aparece uma senhora, líder de um partido, que diz com ar grave: “A culpa do desaparecimento desta criança é do ministro da agricultura e eu, em meu nome pessoal e do meu partido, exijo que o ministro assuma as suas responsabilidades e se demita.”. Ao lado dela, um jornalista pergunta: “Mas doutora, os ministros não são nomeados para resolverem os problemas quando eles surgem? Se ele se demitir, quem assumirá a responsabilidade de resolver o problema?”. E ela irritada: “No limite a responsabilidade é do Primeiro-ministro que o nomeou. E nada mais tenho a declarar. Boa tarde.”. E eu sinto medo de perder a minha família e ninguém me ajudará a procurá-la.

- E ela vai embora sem dizer mais nada?

- Sim, e a notícia seguinte é a mesma senhora na abertura de uma feira de kiwis.

Juliana ergueu o braço e pediu mais uma cerveja e um pratinho de tremoços.

- Este último é o único que tem variantes, mas o conteúdo é sempre o mesmo. Por regra é um tipo grande e largo, vestido com um daqueles fatos integrais dos bebés, e com o cabelo cor de laranja que está a falar a uma multidão, tipo comício e diz “Os perigos são enormes, é um enorme pesadelo, mas eu irei proteger-vos sempre, protegerei sempre o meu povo dos inimigos externos, fanáticos e cruéis!”. E a multidão rejubila de alegria. E eu fico cheio de medo que venham estrangeiros e me matem. Fico com ódio aos estrangeiros.

- E quais são as variantes?

- Umas vezes é o tal tipo de cabelo cor de laranja, vê só… Outra vezes é um tipo com um fato de bebé igual ao do anterior, com o cabelo rapado dos lados e atrás e grande em cima, que dá muitos saltinhos quando fala. Outras vezes, é um tipo de barbas brancas, com uma veste comprida e larga, preta, e um turbante branco. Outras vezes é um tipo com um bigode forte, preto que fala em espanhol e tem um passarinho numa janela. Outras vezes é o tipo dos suicídios, que não fala como os outros – canta, mas este acrescenta sempre: “Mas se forem trabalhar lá para fora, para o estrangeiro, verão que nada de mal vos acontecerá.”. E eu fico com medo de sair do país.

- E é tudo?

- É. O que achas disto?

- Não sei o que diga…

Juliana e Ricardo ficaram em silêncio a observar o largo à sua frente, cheio de “populares”, enquanto eram sobrevoados por dois “meios aéreos”.

 

Fernando Couto

 

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9.8.17

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Foto: Alone - Barn Images

 

Qual foi o seu maior pesadelo? Você se lembra?

Comigo já aconteceu de ter um pesadelo brutal, daqueles em que acordamos transpirando, com o coração acelerado. Demorou um pouco para eu me recompor. E o pior é que mesmo depois de algum tempo acordada, ouvindo o barulho do vento a soprar com violência e o despencar das folhas das árvores, eu voltei a dormir. Dormir e sonhar (afinal um pesadelo nada mais é que um sonho; mal sonhado). Voltei a sonhar com as mesmas coisas que me fizeram acordar encharcada de suor. Era uma sensação ruim, como se eu não conseguisse respirar, talvez. Acho que não conseguia enxergar, faltava-me ar e pouco via, andava tateando, tentando desviar, tropeçava, acabava no chão. Sozinha, sem conseguir enxergar. Não sei quanto tempo durou esse sonho-pesadelo. Me pareceu uma eternidade.

 

Quando acordei pela amanhã, abri os olhos e tudo estava como antes. O sol a brilhar pela janela nos primeiros raios do dia. As gaivotas a grasnar, o mundo como eu conhecia, estava em seu lugar. Que sorte a minha. Tudo não passara de um sonho ruim. Retomei os meus afazeres diários um pouco mais feliz que um dia normal, mas fiquei a pensar naqueles que não tiveram a mesma sorte. Que por um infortúnio da vida, deixaram de ver, de andar, mas ainda assim não deixaram de viver.

 

Leticia Dumas

 

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7.8.17

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Foto: Girl – Claudio Scott

 

Numa luta contra o tempo acelero ao máximo tentando chegar mais depressa do que o relógio ameaça. Previsivelmente, todos os lugares de estacionamento mais próximos estão ocupados e, claro, lá tenho que voltar a estacionar numa curva de interseção entre duas ruas – sempre a desafiar o código da estrada (ousadias que já me valeram umas multazitas, um reboque e tal).

Num passo saltitante sobre o tacão alto (que jeito me faziam agora as sapatilhas!), que é um misto de elegante com desesperada, lá chego à empresa: 09h02! Vá, que até não foi mau! Não consigo perceber porque é que ando a levantar-me cada vez mais cedo e continuo a chegar atrasada!! Quer dizer, perceber, até percebo. Aquela miúda… Porque quer mais um abraço, e porque quer um bocadinho de colo, e porque deixo ficar-me a saborear umas beijocas tão boas, e porque ela tem sempre tanto para me dizer enquanto toma o pequeno-almoço… Amanhã vou pô-la em sentido!

 

Inicio no habitual e delicioso ritmo frenético da rotina laboral e, de repente, quando estou a ler um e-mail daquele Cliente que muda de ideias como quem muda de camisa, pouso o queixo sobre a mão e… Horror! Estou a senti-lo! Enorme, grosso e – imagino – mais negro que o tom de preto mais preto, um pelo no queixo!!!! Começo imediatamente numa demanda por toda a área queixal a identificar outros invasores pilosos e… sim, parece-me que, mais um, NÃÃÃOOOO!!

Mas como é que eu nunca me apercebo disto em casa?! É claro que não me apercebo porque em casa eu paro lá a pousar o queixo sobre a mão! Em casa as mãos andam sempre cheias de roupa ou alimentos, ou filhos, ou…

“Bem, esquece isto que agora tens que trabalhar.” Mas estar a trabalhar temendo que, a qualquer momento, alguém me encare e veja que estou a tentar competir com a barba do patrão… Discretamente, disponho o polegar e o indicador em forma de pinça e enceto tentativas enraivecidas para tentar arrancar um dos usurpadores… em vão!!

 

O dia lá passa e, horas depois de chegar a casa, munida de pinça e espelho encarrapito-me sobre o candeeiro da mesinha de cabeceira. O cenário é ainda pior do que eu imaginara: o meu queixo está a ser conquistado e eu quase pareço a minha avó octogenária – mas ela tem uma boa desculpa!

Enquanto arranco minuciosamente estes espetos negros do rosto, não consigo evitar um suspiro de angústia. Andar minimamente arranjada, ter a casa minimamente organizada, ter sempre ideias minimamente saudáveis para as refeições diárias (e tempo para as concretizar!), dar alguma atenção aos filhotes e ao marido, atualizar-me sobre a minha profissão para levar ideias frescas e boas para o trabalho… Como é que faço tudo isto em 24 horas (e abdicar de dormir as minhas 7 horitas diárias não é uma possibilidade)?

Termino a tarefa e dou uma espreitadela rápida às sobrancelhas que também estão a precisar de um arranjo; mas ainda se aguentam mais uns dias.

Tenho que ir surfar na minha tábua de passar a ferro porque a miúda amanhã tem um passeio e tem que levar o uniforme. E ainda tenho que magicar o que lhe vou preparar para o almoço partilhado...

 

Sandrapep

 

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4.8.17

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Foto: Hand – Gerd Altmann

 

Por vezes acontece um bloqueio face ao tema que é proposto e desta vez tal sucedeu. O significado de pesadelo é para mim demasiado lato para que tivesse conseguido, assim repentinamente, descortinar uma linha de orientação para o que fosse escrever. Assaltaram-me várias ideias, todas elas com um cariz negativo e, algumas, com uma nota vincadamente trágica.

Perder um filho. Pesadelo.

Perder a casa. Pesadelo.

Perder o emprego. Pesadelo.

Perder, perder, perder. De repente temos que o pesadelo já não toca no domínio do sonho. Dos monstros que nos perseguiam à noite e que nos obrigavam a esconder a cabeça debaixo dos lençóis e por vezes gritar pela mãe ou pelo pai.

Agora, para nós, outrora crianças, os pesadelos tornaram-se sérios. Demasiado sérios para passarem com o embalo carinhoso e um “Chiu, dorme bem meu amor. Foi só um sonho mau”.

 

Agora, que somos grandes, os pesadelos escaparam da noite. Quando surgem atacam indiscriminadamente e não olham a horas. Nem onde estamos, nem com quem estamos. Os monstros de outrora podem agora ser um chefe. Ou um colega de trabalho, um vizinho ou um familiar. Os monstros nunca foram O pesadelo, mas sim o instrumento do mesmo. Agora não é diferente.

O chefe que nos persegue. Pesadelo.

O vizinho que não nos dá descanso. Pesadelo.

O irmão que nos quer mal. Pesadelo.

Contudo, acredito que o instrumento mais recorrente do pesadelo tem o nosso rosto. Os rostos que chegam às consultas. Os rostos que anseiam por respostas a questões que, por vezes são mal colocadas. O pesadelo do descontrolo emocional. O pesadelo do abandono daquilo que já foram. O pesadelo do que outrora foi e que amanhã talvez possa já não existir. O pesadelo da culpabilidade. O pesadelo de não haver um rumo. O pesadelo de “não saber o que se passa comigo”.

Filhos, casas, empregos, chefes, vizinhos e familiares. Tudo são elementos externos. Não são o nosso núcleo, a nossa identidade, a verdadeira raiz da existência individual. Muitas das vezes perdem-se e perdem-se sem termos controlo sobre o acontecimento. Acontece o luto, a dor, o questionar, a revolta. Contra Deus, o chefe, o irmão ou o universo.

 

E quando nos viramos contra nós? E quando já não nos reconhecemos como somos? E quando já não gostamos do que vemos ao espelho? Enfim, quando somos nós o instrumento do nosso pesadelo?

 

Rui Duarte

 

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2.8.17

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Foto: Weapon – Michal Jarmoluk

 

“A História é um pesadelo do qual tentamos acordar.”

James Joyce (romancista)

 

Pesadelo... E a primeira visão mental que faço é das noites em que rebolei de forma incessante entre os lençóis de meu leito pelas mãos deste instrumento cerebral de alerta máximo de stress, tal chaleira ao lume gritando para que a desliguem. Haverá contudo uma visão de pesadelo aplicada à existência humana. É nesta que me centro.

 

Sigo as palavras de James Joyce. Que pesadelo poderá ser mais assustador que aqueles que vivemos durante o sono e logo sentimos o alívio de fazer apenas parte de um Mundo imaginário, se não aqueles aos quais não podemos mais fugir? E que vêm de encontro a nossos olhos, através das notícias, a diário? Vivemos um Mundo de pesadelos. Pesadelos reais. Fome, guerra, corrupção, um sem fim de crimes contra a humanidade das mais variadas espécies, cometidos sobe as mais variadas formas e feitios.

 

Seu antônimo... O Sonhar, torna-se pois antídoto crucial, essencial para a luta contra os pesadelos da humanidade que são sim, ao revés dos pesadelos reflexos do viver de cada um e daquilo que nos perturba a alma individualmente, um mal geral que nos atinge sem distinção. Uma espécie de pesadelo-lei que é para todos. Como tal cabe a todos nós sonhar em união para que possamos pois acordar sem pesadelos da História, num futuro que começa agora.

 

Landa Cortez

 

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