Foto: Birdie – Shakti Shiva
- Eu tenho sempre os mesmos pesadelos, que se repetem noite após noite numa sequência que não tem fim. E por vezes volto a eles durante o dia, como se o pesadelo continuasse quando estou acordado, como que tomando conta de mim, por inteiro.
Rodrigo parou e pousou o olhar sobre a mesa, mesmo ao lado do novo copo de cerveja que o empregado trouxera uns segundos antes.
- E sonhos? Tens sonhos?
Juliana procurou assim abrir uma porta, uma janela, qualquer espaço que fosse permeável à luz, na tentativa de aliviar o semblante de Rodrigo.
- Não! Quer dizer, dos sonhos e dos pesadelos só temos as memórias que se agarram a nós, atravessam a noite e acordam connosco, coladas por dentro. Desde que esta sequência de pesadelos se iniciou, não tenho memória de qualquer sonho, não sei se sonho ou não, sei que não tenho memórias desse tipo.
- Mas, de que matéria são feitos os teus pesadelos?
- Em verdade, não sei do que são feitos, mas fazem-me viver atormentado.
- Mas isso é terrível! Conta, por favor!
Rodrigo suspirou, pegou no copo e bebeu dois longos golos. Pousou os braços sobre os braços da cadeira.
- Como expliquei, são uma sequência, todos os dias é um e apenas um, mas sucedem-se e repetem-se. Quando chega ao último, volta ao início; mas a sequência não é sempre a mesma, ou seja, de uma série para a outra, alguns pesadelos trocam de posição na sequência.
Juliana assentia com a cabeça, completamente focada nas palavras de Rodrigo, que continuou:
- Num deles fico desempregado. Chego pela manhã à escola e o diretor chama-me ao gabinete, onde já estão alguns dos meus colegas e o meu avó paterno a cofiar o longo bigode e com um sorriso (ele nunca sorria). E o diretor despede-me porque não preenchi uns formulários e preenchi outros de forma indevida ou errada. Eu saio do gabinete do diretor e estou de imediato no cimo de uma falésia, com sol mas vento forte. Sinto-me humilhado, com vergonha e com medo de cair ao mar.
- E é tudo?
- Sim, neste é tudo. Num outro, regresso a casa depois das aulas e ao entrar na rua, um colega da escola primária, que não vejo há mais de quarenta anos, mete-se à frente do carro (eu vou sempre a pé para a escola que fica a dois quarteirões) e grita que eu não deveria estar ali àquela hora. Continuo e quando chego à minha casa, que é uma moradia (eu moro num andar), vejo que ardeu, completamente. As pessoas passam na rua, indiferentes. Fico no carro a chorar, a pensar onde irei dormir, onde irei morar, como me arranjarei sem as minhas coisas, e reparo que do céu caem um paralelepípedos de pedra, gigantescos, cada um com um cordel enrolado à sua volta e que se vai desenrolando à medida que a pedra cai. São muitas destas pedras que caiem do céu ao mesmo tempo e eu tenho medo que uma delas me esmague dentro do carro, mas as pedras estão sempre a cair, a desenrolar o cordel e, de facto, não vejo nenhuma delas a chegar ao chão.
- E mais?
Juliana engole em seco.
- Num terceiro, está um tipo de fato e gravata, penteadinho, numa espécie de palco que apenas tem lugar para ele, com um microfone à frente, e ele diz: “Nesta tragédia, houve pelo menos uma dezena de pessoas que se suicidaram enquanto tentavam fugir, por não o conseguirem fazer, encurralados pelas chamas!”. Um outro, vestido e penteado como o primeiro, chega junto deste como que a voar, pois não tem palco, chão, para ele e diz-lhe ao ouvido, mas eu ouço, pois sou o único a assistir: “Sr. Primeiro-ministro, peço imensa desculpa mas, afinal, essa notícia não se confirma. Parece que morreram todos queimados a tentar fugir. Peço imensa desculpa.”. O que fazia o discurso diz então: “Porra, não me chame isso que já não sou! Oh Lopes, mas isso é uma merda, homem! Nem um suicídio… pequenino? E agora?”. O outro já lá não está. Então o discurso continua: “Portuguesas e portugueses, tenho de corrigir a informação que acabei de dar, pois afinal parece que não houve suicídios. Mas a culpa não é minha, é ali do Lopes, um tipo que até agora sempre mereceu a minha confiança. A culpa é dele; deve estar vendido ao governo. Eu sou responsável e, quando é preciso, dou a mão à palmatória.”. E aponta para mim e há minha volta está agora um mar de gente a olhar para mim e a gritar: “O Lopes é um traidor! Suicídio já!”. E eu deixo-me cair de joelhos e sinto-me culpado e com medo da multidão em fúria.
- Chamas-te Lopes?
- Eu não.
- E há mais?
Com a pergunta, Juliana avançou um pouco mais para Rodrigo, que em sua defesa bebeu mais um golo de cerveja.
- Neste, estou amarrado numa cadeira frente a uma televisão e só consigo mexer o indicador direito que tem ao seu alcance o botão que permite mudar de canal. Na televisão está a dar um programa daqueles de comentários aos jogos de futebol, com cobertura total e completa, antes, durante e depois do jogo, e eles dizem sempre as mesmas coisas e eu mudo de canal e é outro programa idêntico ao anterior, e volto a mudar de canal e é outro programa idêntico. A televisão tem 250 canais, ou melhor, 125 normais e 125 em réplica HD, todos a darem programas daqueles. Não me consigo libertar, não consigo respirar, sinto muito medo de perder a capacidade de pensar.
- Terrível!
Juliana acomodou-se melhor na cadeira.
- Noutro, estou a ler o jornal, que não tem letras, nem imagens – só o cabeçalho e folhas em branco, e ouço no rádio que o meu neto está desaparecido, que há suspeitas de rapto. Pouso o jornal e estou no centro de uma cidade antiga. Começo a correr pelas ruas estreitas e cheias de pessoas, procurando o meu neto, e à medida que corro as ruas vão ficando cada vez mais estreitas, até que já não consigo progredir pois a distância entre as paredes, ou seja a largura das ruas, é tão pequena que não consigo passar. Então paro e junto a mim, na montra de uma loja, está uma televisão ligada e aparece uma senhora, líder de um partido, que diz com ar grave: “A culpa do desaparecimento desta criança é do ministro da agricultura e eu, em meu nome pessoal e do meu partido, exijo que o ministro assuma as suas responsabilidades e se demita.”. Ao lado dela, um jornalista pergunta: “Mas doutora, os ministros não são nomeados para resolverem os problemas quando eles surgem? Se ele se demitir, quem assumirá a responsabilidade de resolver o problema?”. E ela irritada: “No limite a responsabilidade é do Primeiro-ministro que o nomeou. E nada mais tenho a declarar. Boa tarde.”. E eu sinto medo de perder a minha família e ninguém me ajudará a procurá-la.
- E ela vai embora sem dizer mais nada?
- Sim, e a notícia seguinte é a mesma senhora na abertura de uma feira de kiwis.
Juliana ergueu o braço e pediu mais uma cerveja e um pratinho de tremoços.
- Este último é o único que tem variantes, mas o conteúdo é sempre o mesmo. Por regra é um tipo grande e largo, vestido com um daqueles fatos integrais dos bebés, e com o cabelo cor de laranja que está a falar a uma multidão, tipo comício e diz “Os perigos são enormes, é um enorme pesadelo, mas eu irei proteger-vos sempre, protegerei sempre o meu povo dos inimigos externos, fanáticos e cruéis!”. E a multidão rejubila de alegria. E eu fico cheio de medo que venham estrangeiros e me matem. Fico com ódio aos estrangeiros.
- E quais são as variantes?
- Umas vezes é o tal tipo de cabelo cor de laranja, vê só… Outra vezes é um tipo com um fato de bebé igual ao do anterior, com o cabelo rapado dos lados e atrás e grande em cima, que dá muitos saltinhos quando fala. Outras vezes, é um tipo de barbas brancas, com uma veste comprida e larga, preta, e um turbante branco. Outras vezes é um tipo com um bigode forte, preto que fala em espanhol e tem um passarinho numa janela. Outras vezes é o tipo dos suicídios, que não fala como os outros – canta, mas este acrescenta sempre: “Mas se forem trabalhar lá para fora, para o estrangeiro, verão que nada de mal vos acontecerá.”. E eu fico com medo de sair do país.
- E é tudo?
- É. O que achas disto?
- Não sei o que diga…
Juliana e Ricardo ficaram em silêncio a observar o largo à sua frente, cheio de “populares”, enquanto eram sobrevoados por dois “meios aéreos”.
Fernando Couto