Foto: Portrait - Catharina Rytter
Pesadelos são sobretudo medos que nos perseguem, alguns nunca acontecem, outros acabam por realizar-se e percebemos que afinal não é assim tão trágico, porque esse pesadelo-medo é enfrentado e desvanece, mas há também aquele pesadelo que se realiza inevitavelmente. Foi o que me aconteceu há dias.
Lembro que a primeira vez que presenciei um funeral, tinha aí uns catorze anos, foi porque cismei que tinha que acompanhar o meu Pai, como de resto fazia em quase tudo, não só porque se tratava de um amigo da família, mas também porque queria perceber que ritual era aquele do qual as crianças eram banidas. É claro que me comovi, primeiro porque conhecia as pessoas envolvidas, depois porque a descida do caixão à terra impressionou-me, mas o que mais me marcou, foi perceber que um dia seria, inevitavelmente, o funeral do meu Pai, e isso aterrorizou-me. Durante anos, em todos os funerais a que assisti, na minha cabeça passava uma espécie de mantra: “Ainda bem que não é o meu Pai. Ainda bem que não é o meu Pai. Ainda bem que não é o meu Pai.” Confesso que apenas em uma ou duas ocasiões, por estar tão toldada pela dor, esse mantra não soou na minha mente.
Esta semana, o meu maior pesadelo aconteceu. O meu Pai deixou-me. Depois de ultrapassar quatro internamentos nos últimos meses, partiu pacificamente durante o sono, numa tarde de sol. Partiu como viveu: cheio de luz em volta. Minutos antes, deu-me o privilégio de deixar-me despedir dele, de lhe dizer que aceitaria quer decidisse ficar ou partir, disse-lhe que o que eu gostava dele cá, seria quanto eu iria gostar dele Lá. Pude, acima de tudo, dizer-lhe mais uma vez que se tivesse sido eu a escolher o meu Pai, o teria escolhido a ele, e que ser sua filha é o maior orgulho da minha vida. E acreditem que, apesar do momento de dor, para mim, foi uma honra estar ao seu lado quando decidiu caminhar em direção à Luz.
Inevitavelmente, um dia depois, dei comigo numa missa, agarrada a um cachecol do Salgueiros e a olhar para o meu Pai, sereno, que muito provavelmente estaria a cantarolar o “Não venhas tarde” que era o que ele sempre fazia quando queria gozar com alguém. E o meu Pai definitivamente gozaria com aquele padre… Depois, lembrei-me de uma crónica do Lobo Antunes sobre a morte do seu pai e, tal como ele afirmara na altura, também a mim só me apetecia gritar “Isto Não é o Meu Pai!”. Até que foi hora de chegar uma dor excruciante quando percebi, ali, agarrada àquele corpo inerte, que nunca mais abraçaria o meu Pai; dessa sensação nunca irei esquecer-me. Nesse momento, uma voz Amiga veio sussurrar-me ao ouvido qualquer coisa como: “Lembra-te que um dia o teu Pai também teve que te deixar ir, para viveres a tua vida, agora és tu que tens que o deixar ir a ele, para viver na Luz”.
Ser filha do meu Pai significa o mundo para mim: nasci de semente tardia, os meus pais já estavam praticamente nos quarenta anos, o que na altura já era considerado tarde, por isso, por brincadeira, o meu Pai e os seus amigos diziam que eu era sua neta – a Neta do Bessa – chamavam-me eles. Ainda hoje não sabem o meu nome. Tive o privilégio de ser a sua grande companheira e de o acompanhar para todo o lado, até praticamente aos 21 anos. Foi pela sua mão que fui pela primeira vez a Vidal Pinheiro, ver o clube que acabaria por se tornar a grande paixão da minha vida – porque era o clube do meu Pai, obviamente, e também porque me ensinou sobre a humildade de aceitar as derrotas e sobre apreciar as vitórias.
Uma das coisas mais fascinantes no meu Pai, é que tendo ido para a guerra colonial logo em 1961, onde assistiu a cenas inenarráveis, quando falava de Angola, tinha um brilho nos olhos indisfarçável. Contava-nos sobre a beleza daquele país e de Luanda em particular, e das suas aventuras futebolísticas, mas sempre nos poupou aos horrores a que assistiu.
O meu Pai era um homem de trabalho, não era um homem de grandes conversas profundas, ensinou-me mais com o exemplo da sua conduta do que com falinhas meigas. Uma coisa que eu também adorava nele era o orgulho com que ele falava no seu trabalho, nas casas que construía e, quando me levava a conhecer as suas obras ao domingo de manhã, eu sentia-me tão vaidosa, meu Deus, como eu me sentia vaidosa…
É claro que nem sempre foi fácil ser filha do meu Pai, não lhe foi muito fácil perceber que eu tinha crescido e que tinha direito a fazer as minhas próprias escolhas, mas com isso sei que conquistei o seu respeito. Muitas vezes fazia questão de me levar às festas, a mim e à minha melhor amiga, “para ver o ambiente”, ou então aparecia de surpresa para ver se estava tudo nos conformes, e sair à noite com os amigos, nem pensar! Claro que dava comigo em doida, mas hoje até disso tenho saudades.
Haveria milhares de coisas a contar sobre o meu “Herói de olhos verdes”, mas fico-me por aqui, porque neste momento o pesadelo que se abateu sobre mim não tem jeitos de se desvanecer, talvez um dia eu consiga ver através da névoa, ou pelo menos fingir que consigo ver, porque se há coisa que a vida me ensinou a construir, foi uma bela fachada. Agora só me apetece gritar, gritar muito e dizer palavrões, apetece-me apontar uns e outros na rua e dizer-lhes cara a cara que eles é que deviam ter morrido em vez do meu Pai. Sinto um grito preso na garganta que me asfixia, e visto-me de cinismo. Literalmente.
Nestes últimos dias não paro de me lembrar daquela ocasião em que fui com o meu Pai à bola, nesse dia foi também o meu cunhado. Foi um Salgueiros-Belenenses, num glorioso domingo de Vidal Pinheiro e na confluência da saída do estádio, vinha eu toda animada e distraída a falar com o meu Pai e, como habitualmente, dei-lhe a mão. Só que não era aquela a sua mão. O meu Pai tinha um aperto forte e uma mão áspera e calejada de pedreiro, aquela mão não tinha expressão nenhuma. Entrei em pânico à procura do meu Pai e logo percebi que eles estavam a atrás de mim, a rirem-se divertidos, tal como o senhor a quem eu tinha dado a mão: “Bessa olha, a tua neta quer ir comigo para casa!”. Isto foi numa fração de segundo, foi tempo de dar a mão e olhar para trás, mas foi o suficiente para nunca mais me esquecer do susto que foi não encontrar o meu Pai e sentir-me perdida. Eu saberia ir a pé para casa, se preciso fosse, saberia ir pedir ajuda a um polícia, sabia onde estava o carro, mas queria encontrar o meu Pai. É assim que me sinto nos dias de hoje: perdida. E hoje não há um polícia que me possa valer e nem sequer me adianta ir a pé para casa. O meu Pai morreu, partiu, deixou-me, e eu não consigo aceitar que nunca mais o verei.
Ana Bessa Martins