Foto: Robin – Nathan Owen-Price
“Grito. Antes mesmo de compreender, grito:
- Meu primeiro impulso reativo, minha ancestral defesa. Meu instinto original, herdado em sangue. Meu pecado inocente, meu refrigério.
- Meu aviso de guerra, minha fúria dilacerada. Manifesto de horror, garganta ardendo em sedição. Minha raiva acumulada dilacerando decibéis.
- Meu vício de prazer, minha loucura. Meu urro de vitória anunciada. Salva de estridências e de júbilos erguendo-se no céu despreparado.
- Meu canto de cisne, minha alvorada. Cântico longilíneo sobre a terra. Meu espinho bíblico, minha aflição. Meu voo já sem forças de partir – minha cruz primordial.”
Eu garanto: só tinha a intenção de, em jeito de preâmbulo, reportar-me à definição da palavra “grito”, e, daí, esperar partir para algo que validasse o meu artigo (por sinal já em atraso) do mês de Fevereiro. Mas, como quase sempre me acontece, a palavra decompôs-se-me em frases que me transportam os dedos numa viagem sem hora de regresso – sim, porque as palavras são como as paisagens, atingem-nos, abraçam-nos, marcam-nos... seduzem-nos. As linhas de horizonte são infinitas, atrás de um monte vem outro monte, atrás de uma imagem, vem outra, e outra, e outra...
E o meu grito, aquele que, enfim, me calha como breve apeadeiro, nasce magma vivo contorcendo-se no meu papel, cala em si um sinónimo de angústia – reconheço-o, é um grito de Dor. Transporta em si torrentes de sentimento: é rio indomável, nada sobrevive em si, ele sobrevive em tudo, nada lhe serve de margem, ele é a própria margem. E acarta estilhaços de alma na corrente, não como flutuantes pedaços de madeira, mas como bracejos de velas, lutando para não naufragar. A pulso, sobe, cresce para mim, agiganta-se. Raia de púrpura os ocidentes, asfixia horizontes, esgazeia os olhares que encontra, rasga gargantas. E solta-se, enfim, em estridor de foz e expiação.
Sobe ainda, vertiginoso, em decibéis de asas feridas, descobre-se em liberdade, perde-se no vazio... e desce aos infernos, em ecos de grutas petrificadas pela indiferença (os seus muros de lamentações já se habituaram aos voos sinistros de sombras vampíricas).
Cai, por fim, sob o silêncio de um crepúsculo avermelhado. As estrelas que chegam, acusam o estertor ribombante do seu último suspiro e tremem, como as minhas mãos de memórias vivas.
A noite dobra-se sobre si mesma, veste-se de luto – o grito morreu!
Mas amanhã... amanhã a aurora vai ser cor de rosa e pássaros novos irão aprender gorjeios de uma sinfonia que reinventarei – as palavras são música, também, se quisermos… e a Vida continua. Sempre. Apesar de todos os gritos.
Teresa Teixeira