Foto: Woman – Efes Kitap
A luz da manhã chegou-se à janela, colou-se ao caixilho, avançou para a ombreia e para o parapeito, deslizou pela parede, tocou na cadeira, raspou no armário e derramou-se sobre a cama, dos pés à cabeceira. Quando lhe tocou o rosto, ele acordou, de repente. Ele gosta de ser acordado pela luz das manhãs de primavera. Deixou-se ficar por uns instantes, imóvel, a sentir a luz nas pálpebras fechadas, no calor que se lhe acendia suave no rosto. Saiu da cama num salto que o levou a bater com os dedos do pé direito na cómoda, que ali ao lado se acomodava para mais um dia. Gritou de dor!
Talvez tenha dito um palavrão, logo abafado pelo armário. Acariciou os dedos magoados e percebeu que não havia fraturas. Avançou para a casa de banho. Após algumas funções que ele definiu para si como sendo a melhor forma de começar o dia, e que vou evitar explicar, entrou na banheira. Percebeu que já estava atrasado. Abriu a torneira e a água precipitou-se sobre ele, como só a água sabe precipitar-se. Instantaneamente percebeu que, na precipitação, esquecera de rodar o manípulo para o lado da quente. Gritou de frio!
As manhãs de primavera provocam-lhe fome – é sabido. Na cozinha, percebeu que tinha apenas uma fatia de pão. Excelente para uma torrada. Ligou a torradeira que, nas última semanas vinha a torrar-lhe a paciência, ora não torrando o pão, ora queimando-o. E dedicou-se a pensar sobre o que preferia colocar na torrada. Marmelada, manteiga e um lençol de geleia, doce de mirtilo ou doce de limão, limão, limoeiro, que lindo estava o limoeiro nessa manhã… e os amores-perfeitos logo ao lado, tão perfeitos, sobre os quais se debruçavam os narcisos procurando espelhos, todos inebriados com o cheiro das rosas… a queimado… Gritou de raiva!
Caminhava e sorria. Era primavera, estava sol, o ar estava frescamente a aquecer. Sorria e caminhava. Olhava as pessoas na rua, apressadas e com roupas leves. Caminhava e sorria. Olhava os decotes e as pernas descobertas. Sorria e caminhava. Atravessava as ruas como que esvoaçando, apreciando aqueles prodígios da primavera. Caminhava e sorria. “O metro está hoje encerrado por motivo de greve. Agradecemos a sua compreensão”. Gritou de fúria!
Atrasado e indo a pé para o trabalho. Até era bom, pois assim fazia uma caminhada naquela deliciosa manhã de primavera. Excelente para perder algumas das gorduras que lhe engorduravam a barriga e outras partes. Na esquina, uma criança gritava com a mãe. E como gritava forte… Não tinha mais de cinco anos. E a mãe envergonhada no silêncio. No tempo em que fora criança, não era assim. Os olhos colados na dinâmica da progenitora e do seu rebento. Quando ele era criança, as mães é que gritavam com os filhos. E chamavam-lhes nomes. Alguns nomes, elas chamavam a elas mesmas, certamente entusiasmadas com a gritara. Mas agora anda tudo ao contrário – são as crianças que gritam. E o poste ali tão perto do nariz… Gritou de dor (mais uma vez) e de desespero (por não ter sensores de proximidade, como os carros)!
E foi passando assim aquele dia de primavera. Apreciou o ar quente, a luz, o sol, as pessoas, e celebrou a alegria. Gritou de alegria (em silêncio) por tantos prodígios que um dia assim revela. Por vezes distraia-se e gritava (baixinho e envergonhado) ao tocar o seu exuberante nariz, burilado a poste.
Avançando, que todos temos afazeres…
Quando o sono o assaltou, resolveu deitar-se. Mas antes, assegurou-se de que a janela estava preparada para receber a luz do dia seguinte, que também deveria ser de primavera. Já com o pijama colocado, esticou-se na cama. Esticoooouuu-se e espreguiçou-se, que é uma coisa muito boa, sobretudo numa noite de primavera. Gritou (longamente) de satisfação.
O vizinho bateu na parede e gritou (irritado):
- Não te estiques!
Fernando Couto