Foto: Woman Smiling – Peter Griffin
Alguém desligou o som, depois a luz. E o tempo parou. Quando reiniciou a marcha, sem ter percebido que havia parado, deu por si fragmentada e esquecida. Havia um antes e um depois de qualquer coisa omissa. Uma brecha, pequenina, quase insignificante, era agora um portal de livre circulação de todos os demónios, outrora em quarentena segura. E o tempo, sem saber quem era, não se compadeceu de nada nem de coisa nenhuma: fez a alma acolher a anarquia, permitiu à mente rodar as piores películas de sempre e esmagou o coração sob a tirania da mentira e do desencanto. Tudo isto como um castelo de cartas, derrubado com um sopro suave, quase poético, mas cujo fascínio termina no momento em que cai a última carta. Caiu tudo. Mudou tudo. Tudo.
Acordada da letargia que lhe desligou o relógio, tomou consciência do quanto doía dentro de si. Os dias e as noites foram atormentados por uma multidão, que gritava e bailava, dentro dela. Vultos sem rosto, vozes zangadas. Quanto mais a alma sangrava, mais nítido se tornava aquele cenário: os seus demónios, à solta, numa dança perversa. Estavam lá todos. Serviu-lhes um cocktail à chegada e assistiu, sem mexer um dedo, à expropriação de si mesma. Em pouquíssimo tempo, tudo o que tinha sido já não era, mas continuava sem saber o que chamar àquele intervalo frenético. Não sabia o que lhe faltava lembrar para respirar sem doer. Andou assim muito tempo: fora dela, sem força para agir; dentro dela, absolutamente perdida, escrava de algo sem nome nem código postal.
Numa incerta manhã, porém, sentiu-se mais leve. Os demónios já não dançavam tranquilos dentro dela. O tempo começava a ligar as pontas soltas e a estreitar afetos genuínos. Sentiu-se abraçada pelo universo, envolvida num manto de amor e, lentamente, vislumbrou luz dentro da alma. Uma chama tímida iluminava o maior dos seus inimigos: o medo, atroz. De quê? De tanto. Demasiado. Ali, iluminado, num canto. Imenso. Pesado. E aquela chama. Pequenina. Pálida. Não se reconheceu nela mas havia algo de familiar no tipo aninhado no canto. Sentiu medo do medo, por si nomeado maestro dos afetos e da esperança. Deixou-o conduzir a sua vida, em absoluta escuridão, com uma batuta exigente e pesada, a um ritmo alucinante. A seu lado, mirando a orquestra, a culpa, companheira silenciosa de algumas décadas. Mas, ao longo dos meses, a dança foi ficando mais lenta e solitária. Alguns bailarinos exímios deixaram de ter parceiro à altura e abandonaram o recinto; o suficiente para, pela primeira vez, conseguir sentir o calor daquela chama e perceber como era, afinal, tão forte. Deu-se inteira à força daquela energia, deixou-a varrer memórias para parte incerta e, naquela centelha de luz, sentiu-se enraizar e crescer.
O tipo, no canto, continua lá. Tem dias em que ainda consegue levantar-se e gritar, mas já não há chama que o alimente por muito tempo. Parte dela sente que, se hoje o tempo dói, o tempo cura. Sabe que, se hoje o medo grita, o amor abraça num silêncio que protege, suavemente. Continua assustada e confusa, em digestão lenta de um processo de finitude, mas sente que talvez seja apenas o fim do reinado do medo. Morrer para renascer, num reino sem déspotas. Sente-se no caminho do desapego e, ao mesmo tempo, a aprender a receber. Apesar dos dias em que boicota esta intenção, sabe que o mundo não vai desmoronar. Ainda que assuste esta mudança. Ainda que doa.
Dentro dela há, subitamente, um antes e um depois, não do amor e da vida, de que se esqueceu ser merecedora, mas da dor e da angústia que, numa implosão violenta, quase a destruíram. Sabe que morreu, que já não é a mesma, mas sente-se renascer naquela chama que segue no horizonte. Quando se foca nela sente a alma vibrar, numa harmonia que a faz sentir-se em casa. Ainda não está mais plena, de sonhos e resiliência, mas sente mais leveza nos seus passos. Para trás, fica a bagagem que não lhe pertence mais. Ainda não sabe para onde vai mas já não está perdida. Algo lhe diz que está no caminho certo.
Alexandra Vaz