30.11.15

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Foto: Woman Smiling – Peter Griffin

 

Alguém desligou o som, depois a luz. E o tempo parou. Quando reiniciou a marcha, sem ter percebido que havia parado, deu por si fragmentada e esquecida. Havia um antes e um depois de qualquer coisa omissa. Uma brecha, pequenina, quase insignificante, era agora um portal de livre circulação de todos os demónios, outrora em quarentena segura. E o tempo, sem saber quem era, não se compadeceu de nada nem de coisa nenhuma: fez a alma acolher a anarquia, permitiu à mente rodar as piores películas de sempre e esmagou o coração sob a tirania da mentira e do desencanto. Tudo isto como um castelo de cartas, derrubado com um sopro suave, quase poético, mas cujo fascínio termina no momento em que cai a última carta. Caiu tudo. Mudou tudo. Tudo.

Acordada da letargia que lhe desligou o relógio, tomou consciência do quanto doía dentro de si. Os dias e as noites foram atormentados por uma multidão, que gritava e bailava, dentro dela. Vultos sem rosto, vozes zangadas. Quanto mais a alma sangrava, mais nítido se tornava aquele cenário: os seus demónios, à solta, numa dança perversa. Estavam lá todos. Serviu-lhes um cocktail à chegada e assistiu, sem mexer um dedo, à expropriação de si mesma. Em pouquíssimo tempo, tudo o que tinha sido já não era, mas continuava sem saber o que chamar àquele intervalo frenético. Não sabia o que lhe faltava lembrar para respirar sem doer. Andou assim muito tempo: fora dela, sem força para agir; dentro dela, absolutamente perdida, escrava de algo sem nome nem código postal.

 

Numa incerta manhã, porém, sentiu-se mais leve. Os demónios já não dançavam tranquilos dentro dela. O tempo começava a ligar as pontas soltas e a estreitar afetos genuínos. Sentiu-se abraçada pelo universo, envolvida num manto de amor e, lentamente, vislumbrou luz dentro da alma. Uma chama tímida iluminava o maior dos seus inimigos: o medo, atroz. De quê? De tanto. Demasiado. Ali, iluminado, num canto. Imenso. Pesado. E aquela chama. Pequenina. Pálida. Não se reconheceu nela mas havia algo de familiar no tipo aninhado no canto. Sentiu medo do medo, por si nomeado maestro dos afetos e da esperança. Deixou-o conduzir a sua vida, em absoluta escuridão, com uma batuta exigente e pesada, a um ritmo alucinante. A seu lado, mirando a orquestra, a culpa, companheira silenciosa de algumas décadas. Mas, ao longo dos meses, a dança foi ficando mais lenta e solitária. Alguns bailarinos exímios deixaram de ter parceiro à altura e abandonaram o recinto; o suficiente para, pela primeira vez, conseguir sentir o calor daquela chama e perceber como era, afinal, tão forte. Deu-se inteira à força daquela energia, deixou-a varrer memórias para parte incerta e, naquela centelha de luz, sentiu-se enraizar e crescer.

O tipo, no canto, continua lá. Tem dias em que ainda consegue levantar-se e gritar, mas já não há chama que o alimente por muito tempo. Parte dela sente que, se hoje o tempo dói, o tempo cura. Sabe que, se hoje o medo grita, o amor abraça num silêncio que protege, suavemente. Continua assustada e confusa, em digestão lenta de um processo de finitude, mas sente que talvez seja apenas o fim do reinado do medo. Morrer para renascer, num reino sem déspotas. Sente-se no caminho do desapego e, ao mesmo tempo, a aprender a receber. Apesar dos dias em que boicota esta intenção, sabe que o mundo não vai desmoronar. Ainda que assuste esta mudança. Ainda que doa.

 

Dentro dela há, subitamente, um antes e um depois, não do amor e da vida, de que se esqueceu ser merecedora, mas da dor e da angústia que, numa implosão violenta, quase a destruíram. Sabe que morreu, que já não é a mesma, mas sente-se renascer naquela chama que segue no horizonte. Quando se foca nela sente a alma vibrar, numa harmonia que a faz sentir-se em casa. Ainda não está mais plena, de sonhos e resiliência, mas sente mais leveza nos seus passos. Para trás, fica a bagagem que não lhe pertence mais. Ainda não sabe para onde vai mas já não está perdida. Algo lhe diz que está no caminho certo.

 

Alexandra Vaz

 

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27.11.15

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Foto: Woman And Mask – George Hodan

 

“Jean Jacques Rousseau definiu civilização como sendo o estádio em que as pessoas constroem vedações à sua volta. (…) Toda a civilização é produto de uma falta de liberdade imposta pelas vedações construídas pela sociedade.” (Murakami, Haruki: Kafka à Beira-Mar).

 

Eu acredito que, no campo individual de cada um de nós, também isso acontece. Aí não lhe chamaria vedações; trocava, então, por máscaras; o invólucro que reveste cada ser, aquilo que está à tua frente. No fundo, a parte mais óbvia. Também entendida, às vezes, como as defesas que cada um ergue à sua volta. A verdade é que o nome talvez pouco importe. Importa, sim, a razão, a mesma independentemente do nome que se dê àquilo que de nós mostramos aos outros. E a razão é o medo! O medo de ser-se quem se é, seja lá o que isso seja e signifique, e dar a conhecer quem se é.

À medida que crescemos, corremos o perigo de ficarmos cicatrizados e de carregar essas mesmas cicatrizes às costas. Provocadas pelos outros ou, tão simplesmente, por nós próprios. É a causa do medo. E o medo, seja de qual for e do que for, impede-nos sempre de sermos livres. O medo de não nos darmos aos outros, presos no nosso próprio casulo, na escuridão onde ninguém chega, como que se vivêssemos aprisionados na nossa prisão interior.

Quando digo dar-se a alguém, refiro-me de maneira a que o outro conheça as mais profundas janelas do nosso ser e/ou da nossa consciência. Ao invés, fechamo-nos na nossa própria concha, qual ameijoa, qual quê! Chegar ao nosso eu mais íntimo dá mais trabalho: aos outros e a nós próprios, com a chegada deles até aí (lá está o medo novamente à espreita!).

O que os outros acabam por ver é o invólucro do qual somos revestidos. Aquilo que tu vês, que está a tua frente, é fácil de gostar, é motivo de simpatia logo à partida. A parte obscura, mais sombria e triste, é mais difícil de gostar e de lá chegar. Esse receio de sermos absolutamente transparentes com o outro, o não conseguir libertamo-nos dele, dá-nos a sensação de que ficamos sempre pela metade, como se algo se fosse perdendo pelo caminho… Faz-nos sentir ocos, vazios, como que se o único som que existisse dentro de nós fosse as soadas constantes e ensurdecedores do nosso próprio medo.

“Medo é fraqueza como nuvem”: uns dias mais soalheiros, outros em que o céu carregada o peso das nuvens. É essa nuvem que pode parecer negra, que é o constante desafio que impões a ti próprio. Pode não ser algo mau, mas quando não nos faz dar o passo em frente, torna-se perturbador. E quando não conseguimos entregar-nos aos outros, também perdemos, todos os dias, um bocadinho dos outros e daquilo que nos rodeia…

 

“As coisas no exterior são projeções do que tens dentro de ti, e o que tens dentro de ti é uma projeção do que te rodeia. Por isso, quando entras no labirinto exterior que te cerca, estás ao mesmo tempo a penetrar no teu labirinto interior. Uma odisseia perigosa, sem sombra de dúvida.” (Murakami, Haruki: Kafka à Beira-Mar).

 

Sandra Sousa

 

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25.11.15

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Foto: Pensive Baby – Amy Quinn

 

O dia é de sol – luz e calor – mas o teu ânimo adequa-se mais a uma noite de inverno, tenebroso e escuro.

Preencho-te de beijos, abraços, mimos, colo. Quero fazer-te sentir especial, amado, protegido. Dar-te tudo aquilo que realmente importa. E tu queres, precisas e gostas. Mas não chega. Não chega para te fazer feliz: nem muito feliz, nem muitas vezes feliz. Porque a felicidade parece em ti algo de estranho, que não pode permanecer muito tempo, já que é com a tristeza que melhor te identificas.

Os bons momentos, aprecia-los palidamente. Os maus momentos, vive-los como se não aguentasses mais o peso do mundo sobre os teus ombros. Uns ombros tão pequenos como o devem ser os de uma criança que és.

Interpretas as frustrações como amargas derrotas; os erros como falhas irremediáveis. E choras, choras tanto, que não sei se são as lágrimas que te impedem de ver: de ver que te Amo infinitamente, que a perfeição não existe, que os erros são humanamente aceitáveis, que ainda há tanto, mas tanto que não viste e viveste que…

 

Tão pequeno que és, e já te sentes tão derrotado. E eu impotente. Porque não sei como fazer para te fazer perceber que a felicidade está mesmo aí, à tua frente, pronta para que mergulhes nela.

E sabendo eu que as verdadeiras frustrações, os erros graves, as situações complicadas ainda estão por vir, sinto que tudo vai ser-te mil vezes mais difícil do que normalmente seria.

E quando recordo a primeira noite que passámos juntos em casa, e eu percebi, assustada, que tu nunca mais te irias embora, sentindo-me impotente e incompetente para tomar conta de ti, concluo que estava muito, mas muito longe de imaginar o terror que hoje sinto, por estar certa de que tomo tão bem conta de ti, mas que não consigo proteger-te das tuas sombras.

 

Sandrapep

 

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23.11.15

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A tempo: Escrevo este texto num momento muito

particular (mais um!). Todos, particularmente os que

vivemos no mundo ocidental ou que perfilhamos os

seus valores, cultura e modo de vida, estamos em

estado de choque, pelos ataques bárbaros ocorrido

em Paris, França a 13 de novembro de 2015.

 

Amo e não encontro quem me ame.

Sou pobre e vivo no meio da riqueza.

Não tenho acesso ao sistema educativo, ou recuso-o, nem a trabalho, mas é-me mais ou menos fácil, mesmo que iletrado e pobre, ver possibilitado o acesso e a posse de armas mais ou menos sofisticadas e outro material de uso militar.

Sem motivos evidentes, por qualquer motivo ou por um conjunto de motivos, torno-me num radicalista.

 

Poderei isolar-me e criar uma cápsula que me isola da sociedade.

Poderei, no meu estado de fragilidade, apercebido ou não, ir ao encontro de um qualquer movimento fundamentalista mais ativo, algo de sedutor, de redutor, que me permite e promete tornar-me numa parte influente contra o que me oprime. Sou presa fácil para ser seduzido a tentar ações imediatas, violentas até ao ponto de admitir matar indiscriminadamente. Até ao ponto de isso implicar a minha própria morte. Como uma redenção.

 

Medo. Trevas. Barbárie.

 

Sou, talvez, ainda mais pobre, muito mais pobre.

Vivo bem longe das sociedades desenvolvidas e ricas. Conheço-as, contraditoriamente, elas acenam-me cada vez com mais proximidade, através da globalização que o mundo digital permite.

Sempre foi assim, sempre houve pobreza extrema ou ela instalou-se pela guerra.

Aqui, pelo contrário, em vez de mudar de campo e violentamente lutar contra os ricos e cosmopolitas, sinto-me atraído por aquela sociedade. Torna-se a única esperança e a solução para o meu futuro.

Custe o que custar, quero ir para uma Europa rica, iluminada e segura.

Quem sabe deste meu transe, aproveita-se, organiza redes clandestinas e mostra-me que me pode fazer chegar à terra prometida. Para isso suga-me todos os meus poucos recursos. O que tenho e que não tenho.

Criam-se hordas de milhares, milhões de pessoas, só os mais jovens ou famílias inteiras que acometem, sobressaltam as fronteiras da Europa. Esta, velha e a tornar-se decrépita, tem medo. Pavor. Torna-se irracional.

 

Tudo acontece ao mesmo tempo. Quase ninguém tem a capacidade para compreender, processar toda esta informação e estas situações novas.

 

Medo. Ignorância. Pavor. Trevas.

 

Como é que com tanta luz, como é que neste mundo digital e da informação, a ameaça das trevas estabelecerem o seu império é cada vez maior?

 

Jorge Saraiva

 

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20.11.15

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Foto: Businessman On Road – Digital Media

 

O meu maior medo é errar.

Errar na escolha da direção certa.

Errar na direção e errar na escolha.

Sempre foi e deverá continuar assim…

Ou, deverá aumentar toda a incerteza ainda mais, a partir do momento em que tenho outros seres pequeninos que dependem de mim.

Vou agora ou vou depois?

Vou pela esquerda ou pela direita?

Faço por cima ou faço por baixo?

Visto mais ou visto menos?

Faço mais ou faço menos?

Falo mais alto ou falo mais baixo?

Falo ou nem sequer abro a boca?

Deixo passar ou vinco bem o momento?

Tenho saudades dos tempos em que tinha medo do escuro por acreditar em monstrinhos.

Agora tenho medo de que eles tenham medo do escuro pois sei que a sensação não é boa, mesmo que seja passageira.

Ainda me lembro do medo de bichos rastejantes e outros voadores.

Agora, eles que fujam, pois tenho medo que ataquem quem não devem; então extermino-os.

Não tinha medo algum de ficar doente, pois até gostava de ficar em casa no quentinho e ver televisão o dia todo.

Hoje posso dizer que tenho pavor de viroses e de que alguma deixe marcas para a vida.

Pode ser que um dia mude novamente mas, por agora, o medo de errar em todas estas situações persegue-me diariamente mas não me deixa andar à deriva.

 

Sónia Abrantes

 

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18.11.15

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Não sou medricas, mas tenho medos. Medos patéticos que não me condicionam, medos compreensíveis se o que está em causa é o desconhecido e medos necessários porque me defendem de consequências que podem pôr em risco a minha segurança. Mas o medo de todos os medos, o que mais me horroriza, é o da separação. Tenho medo, muito medo, de perder definitivamente aqueles que amo. Não consigo a elevação necessária e suficiente para me contentar com a ideia de que um dia, talvez, nos voltaremos a encontrar. Preciso de sentir a presença deles, de vê-los, de povoar o meu pensamento com imagens.

Acontece, por vezes, que essa necessidade é tão imperiosa que o meu inconsciente me defende levando-me a sentir e a ver pessoas de quem me separei. Acontece das mais diversas formas mas, com frequência, acontece-me sonhar com elas.

 

E é em sonhos que muitas vezes a revejo e mato saudades. Nunca dou pela sua chegada, vejo-a simplesmente. Ali permanece em silêncio sem outro propósito que não seja o de velar o meu sono. Está à vontade, com a naturalidade de quem pertence àquele lugar e de onde parece nunca ter saído. Vejo-lhe o rosto, o mesmo rosto que serviu de tela ao tempo que lhe desenhou toda uma vida em riscos profundos e lhe matizou os cabelos de cinzento e branco. Mas está tão igual a ela própria, tão familiar, que a sua presença não me intriga ou surpreende. Fico feliz por a ter junto a mim.

Não fala, nunca foi de muitas falas, mas sorri para mim. Um sorriso tranquilo de quem sabe amar e não cobrar por esse amor, capacidade que os ascendentes nos ensinam mas que nem sempre aprendemos, ou tardamos em aprender. Quero agradecer-lhe e retribuir esse amor num abraço até à eternidade. Estendo os braços mas o contacto com o seu corpo tarda. Abro os olhos. À minha volta um vazio de morte e o único medo que sinto é que esse seja o nosso último encontro.

 

Cidália Carvalho

 

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16.11.15

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Foto: Mum And Son – George Hodan

 

E quando eles entram em casa, em silêncio? Aquele silêncio assustador, perturbador e incompreensível para os outros. Aquele silêncio que traz consigo muitas dúvidas e anseios e, não sei porquê, a nossa avaliação diz que estão a sofrer profundamente e, como o silêncio não traz palavras, temos de o descodificar com muita habilidade e engenho. Pensa-se uma, duas, três e, as vezes que forem necessárias, para escolher as palavras certas para iniciar uma conversa. Não sei se algum dia vou aprender a utilizar as palavras certas, mas sei que há uma necessidade imperiosa de dizer qualquer coisa... agora não; não é o momento certo… talvez mais logo ou amanhã. Vamos deixar que o sono traga alguma lucidez. Depois volta-se a pensar no mesmo… e se amanhã já é tarde? Ouvimos as notícias e, como estas raramente nos trazem algo de positivo, a angústia aumenta. O silêncio do outro lado mantém-se. Um semblante apagado, sem que nada nos ajude a decidir. Sentamo-nos ao lado deles e, o seu silêncio parece que nos empurra para o fosso da nossa existência.

 

Este silêncio traz impotência, porque é duro e constante. Não há sinal de que queiram falar, mas sentimos necessidade de passarmos para o papel de descodificador. Ganha-se coragem… bem… é agora! Começa-se por algum lado, se é o lado certo ou não, não sei quem sabe… e, do outro lado, cai uma lágrima, sai uma expressão diferente, mas palavras, nenhuma. Estamos algum tempo nisto. Muitas vezes estamos nisto sem sabermos exatamente se é o caminho certo. Sentimos que temos de os ajudar a sair daquele sofrimento e desconforto, porque sabemos das consequências de os perpetuarmos, mas, o que também sabemos, é que já estamos envolvidos no desconforto e no sofrimento. Eu tenho medo destas situações e, quando os afetos se misturam, tenho mesmo muito medo de não ter discernimento para ajudar!

 

Ermelinda Macedo

 

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13.11.15

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Foto: Table Setting – Greg Getten

 

Na próxima segunda-feira, quando o restaurante abrir, Joaquim já não estará lá.

 

Começou a trabalhar aos 10 anos para que mais algum dinheiro suavizasse a pobreza da família. Ter de deixar a escola entristeceu-o e revoltou-o – gostava de aprender e era aluno dedicado e com bons resultados. A D. Laura, a sua mestra, dizia que o Quim poderia vir a ser alguém, quem sabe, doutor. O Joaquim acreditou que esse era o seu desígnio e tomou a hipótese da velha senhora como o seu objetivo. Acreditou ser possível, pois ainda desconhecia o mundo em que vivia. Conheceu-o daí a pouco num embate duro e desigual. Começou por fazer entregas na mercearia do irascível Sr. Antunes, naquela gigantesca e pesada bicicleta, de porta em porta, todo o dia, todos os dias. Dedicou-se ao trabalho como se dedicara à escola, ansioso por ganhar muito dinheiro e um dia, em breve, voltar ao objetivo que a mestra estabelecera para ele. O dinheiro foi entrando mas nunca o muito necessário, por isso o regresso à escola foi sempre adiado.

 

Ainda moço mas já com corpo de homem, bem desenvolvido e musculado, foi conhecendo a vida de emprego em emprego, em lojas e armazéns. Um dia percebeu que o tempo em que vivia era assim, implacável, percebeu que a sociedade em que vivia era assim, com oportunidades só para alguns e que ele não constava na lista dos escolhidos. Foi então que decidiu partir. Conseguiu trabalho num paquete, como empregado de mesa, a percorrer uma boa parte do mundo. Um dia cansou-se do embalo dos mares, sentiu enormes saudades da terra firme por baixo dos pés e correu para os braços da Graça, mulher bonita, roliça e desembaraçada, com que namoriscava desde os 17 anos.

 

Casaram e Joaquim continuou à volta das mesas, de restaurante em restaurante, enquanto os filhos foram nascendo, o João primeiro, a Rita logo a seguir. Joaquim fez formações, tornou-se um profissional de mérito, trabalhou em excelentes restaurantes e nas suas mesas sentou-se gente diversa, gente importante que muito o considerava, pessoas que necessitavam da sua opinião e com quem ele gostava de conversar sobre os tempos, sobre o ser, sobre a vida. Alguns ficaram seus amigos. Os filhos foram crescendo e, esses sim, tornaram-se doutores – eram já outros tempos.

 

Os novos tempos, como tudo na vida, trouxeram coisas boas mas sem deixarem de arrastar coisas más. Quando a idade foi crescendo, o Joaquim viu-se trocado por colegas mais novos, que condiziam melhor com a decoração moderna das salas e das mesas. Teve, por isso, de baixar para restaurantes de nível médio, mas a competência e a exigência consigo mesmo sempre lhe asseguram bons lugares e boa remuneração. Como os filhos já estavam encaminhados e as exigências dele e da Graça estavam longe de ser demasiadas, sentia-se bem, feliz e por isso tornou-se mais contemplativo, mais profundamente observador das pessoas, confrontando os tempos vividos e o tempo presente, analisando as diferenças, as que exaltava como positivas e as que lamentava como negativas. Refletia sobre o que o tempo faz às pessoas, sobre o que elas fazem com o tempo que têm, como vivem nos tempos que correm.

 

E foi então que aquela família entrou no restaurante para o almoço de sábado. O homem, marido, pai, empurrando o carrinho de bebé e carregando os sacos. A mulher, esposa, mãe, no meio, com a filha mais nova ao colo. A mais velha, à frente, abria o caminho e as portas. Olharam à volta apenas o mínimo para detetarem uma mesa para quatro pessoas, num canto protetor, numa sala ainda quase vazia. Se tivessem olhado teriam percebido um casal já a meio da refeição, deliciados pela pizza, em conversa serena de fim-de-semana e um homem de cabelos grisalhos, num outro canto, à espera que lhe trouxessem a sobremesa. O homem marido estacionou o carrinho, pousou os sacos e sentou-se de um lado, sempre em silêncio. A mulher mãe, com cara dura e fechada, nunca levantando o olhar acima do nível do seu próprio queixo, ralhou longa e convictamente com as filhas, encontrando obediência indiferente na mais velha, que se sentou ao lado do pai partilhando com ele o silêncio, e encontrando total indiferença na mais nova, apenas interessada em pegar em todos os acessórios depositados sobre a mesa, já sentada numa cadeira adaptada ao seu corpinho, que o Joaquim, após as boas vindas que se perderam no éter, colocou num dos topos da mesa, tendo a irmã à sua direita. De repente, a mulher calou-se e sentou-se frente à mais velha, pegou no telemóvel e toda a sua atenção se concentrou a dedilhá-lo. Em ato contínuo, o homem pegou no seu e também o acariciou, dedilhando-o. Assim ficaram loooongos minutos, fora dali, enquanto as meninas brincavam e conversavam entre si.

 

O Joaquim ficou a contemplar esta família, deste tempo em que tocamos, dedilhamos, acariciamos, não os corpos e as almas dos que deveriam ser os nossos queridos, mas dos nossos imprescindíveis e omnipresentes equipamentos. E imaginou os posts que estavam a ser colocados nos facebooks:

“Acabamos de chegar ao restaurante – é óptimo Tatá, obrigada pela recomendação. Estou esfomeada! E as miúdas hoje estão insuportáveis!”;

“Ainda bem que gostas, querida. Para ti, tudo! Cuidado com essa fome! Tu és linda e não podes engordar. E as meninas são tão queridas como tu; são uns anjos. Que família tão bonita!”.

“Acabamos de abancar. A fome é tanta que nem sei o que hei de devorar…”;

“Então atira-te à cerveja e agarra umas tripas para ganhares força para o jogo de logo. Vamos ganhar, vamos dar cabo deles!”.

Joaquim disse para consigo: “Quim, vai até lá recolher o pedido e põe fim àquela miséria.”. E foi, mas a miséria não findou.

 

Na próxima segunda-feira, quando o restaurante abrir, Joaquim estará a caminho da aldeia da Graça, com calma, com tempo. Esse será o primeiro dia da sua reforma.

 

Fernando Couto

 

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11.11.15

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Foto: Metrónomo – Vera Kratochvil

 

Life is a tapestry of hours
Forever mellowing in tone,
Where all things blend, even the longing
For hours I have never known.

Hazel Hall

 

A mim sempre me fascinaram os Tempos. Musicais. O que, não o parecendo, continua a ser falar do tempo, só que de um modo mais… melodioso.

Na terminologia musical, tempo é o nome dado à pulsação básica subjacente de uma composição musical qualquer. Cada “clique” do metrónomo corresponde a um tempo. Os tempos agrupam-se em valores iguais e fixam-se dentro de divisões das pautas musicais conhecidas como compassos.

Ou seja, cada um de nos é, no fundo, uma composição musical única, sem paralelo, regida pelo seu próprio metrónomo. Isto é, todos nós somos uma música, a nossa banda sonora, criada pelos vaivéns da nossa existência.

Se o compositor é um deus, ou cada um de nós, resolvam vocês porque eu não sei, de todo, o que responder. Cada um é cada um e eu sei de mim.

Sei que, está mesmo quase a fazer dois anos, tropecei com o meu tempo no de muitas outras pessoas e essas pessoas foram avisando que, bem… que o meu tempo estava mesmo, mesmo a acabar. A dar os últimos acordes, fraquinhos e aparentemente pouco afinados. Ou então que ia ficar um instrumento partido, abandonado, queimado pelas circunstâncias, paradoxalmente com muito tempo mas sem nenhuma composição musical coerente a amparar-me e dirigir-me.

Pois bem, mal sabiam que eu é que componho para mim. E trata-se de uma sinfonia, complexa, louca, moderna, dócil por vezes, perturbante noutros tempos. E longe de estar terminada e eu só pararei quando souber que está terminada.

O tempo musical, já dizia Stravinsky, é elástico. Na altura vi-me a executar um Largo (bastante lento). Agora, vou a iniciar um Allegro. Não tive que mexer nas notas e compassos, apenas o tempo real teve que se dobrar à vontade da melodia. Sou fiel à minha obra.

Repito, é o tempo real que se tem de adaptar.

Já vi suficiente número de seres humanos a fazer isso para saber que é possível. Eu amo a minha música. Adoro ouvi-la constantemente. Penso no milagre das harmonias, quando a nossa música se casa na perfeição com a de outro ser humano.

Sou feliz enfim.

E acredito que a minha sinfonia irá acabar, contra tudo e todos, com um Molto, Molto Allegro.

 

Laura Palmer

 

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9.11.15

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Foto: Your Are Late – Petr Kratochvil

 

Falar do tempo é uma responsabilidade acrescida, um atrevimento, uma aventura; é tocar um assunto que mexe com tudo e com todos, portanto, vale a pena evitar enquanto não houver propriedade nem conteúdo próprio. Ou, sem o devido beneplácito, falece mérito para ousar referir-se a vida, a humanidade e as comunidades, este é o sentido do termo tempo que me ocorre deliberar de outra forma não teria substância.

 

Uma das virtudes do Homem é construir, quer sejam laços afetivos, habitação, carreira, todo o complexo de direitos que lhe assistem enquanto cidadão. A vida é um programa, um conjunto de projetos individuais cada qual com um objetivo específico, posteriormente conciliáveis e integrados num objetivo coletivo comum, a missão do Homem que é ser feliz, mas um sorriso verdadeiro.

O indivíduo enquanto ser pensante desenvolve de forma contínua e deliberada consciência sobre a missão árdua que lhe espera, na sua convivência com todos sem exceção e com os eruditos em particular, são transmitidas as regras e boas práticas de convivência, testemunho este que sela cada fase da vida completada. Em ato contínuo de assimilação das lições transmitidas, a pessoa envolve-se à realidade que lhe circunda e aplica as ferramentas apreendidas num processo de autoavaliação e consolidação do conhecimento na escola da vida.

Na verdade, o ser humano inserido numa sociedade não tem vida própria, é uma alma ambulante emprestada para corporizar desejos supremos, por conseguinte, vive de si e para os outros, estes que criam muitas expetativas numa só pista com sentido único, tal que o bom e apurado senso e o respeito ao tempo evitam colisões certas, ou que pelo menos ocorram com menor gravidade possível, afinal, o acidente é parte da vida, é uma sequência da circunstância.

 

Reza o velho adágio que existem três coisas que nunca regressam ao seu estado anterior, a oportunidade desperdiçada num momento de aparente bonança, a palavra proferida em ambiente eufórico em que a emoção domina a racionalidade, e a pedra atirada para o espaço ferindo terceiros ou, pela força da gravidade, a nós próprios. Em todas as circunstâncias descritas o autor pretende salientar o desperdício da substância, a matéria em causa, e do tempo real. Entretanto, em minha modesta opinião, ocorre a transformação dessas matérias e com a mão do tempo haverá um reencontro com o passado fortuito numa futura ocasião, agora presente.

O tempo por ser um recurso precioso, um bem económico, precisa de ser gerido tendo em conta o curso ou orientação estratégica, o seu uso racional permite maximizar os resultados perseguidos. Aqui reside uma virtude dos líderes, a sua relativa organização deve-se ao sistemático registo escrito dos factos e subsequente consolidação destes. A capacidade de trabalhar sob pressão mantendo níveis de desempenho estáveis resulta em grande medida do improviso, este que não é um mero acaso mas sim fruto desta organização e gestão do tempo.

Quando se esconde no tempo para justificar um baixo desempenho equivale a negar a dinâmica do tempo, rejeitar a sua própria existência e natureza. Não basta viver para o hoje, vive-se melhor quando se age hoje (aqui) a pensar no amanhã (ali). O desejável impacto que se pretende imprimir a médio e longo prazo, quando nos revemos, é o lapso de tempo que as ações ganham maturidade e refletem verdadeiramente as reais intenções, o ponto onde se atinge o equilíbrio entre a ação e o impacto na sua e na vida dos outros.

 

António Sendi

 

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8.11.15

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Foto: Girls With Masks – Lucy Toner

 

O tempo é algo que me tem atormentado bastante nos últimos dois anos. Quando estudava escritores na escola e alguns deles falavam sobre a imutabilidade do tempo e como a angústia da sua passagem se refletia na sua escrita, nunca percebia por que razão isso os afetava tanto! Agora percebo, porque também a mim o tempo me angustia! Não só a passagem do tempo mas também o que fazemos dele.

 

Há dois anos atrás a minha irmã morreu num acidente de carro e a forma como eu via o tempo alterou-se profundamente. Sempre tentei ter tempo para as pessoas de quem gosto e muitas vezes dava prioridade a isso em detrimento de outras coisas. Durante alguns anos não me importava de ter horários pequenos nas escolas, porque assim tinha tempo livre para me dedicar a estar com as pessoas.

Passava muito tempo com a minha irmã. Nos últimos anos ela tinha estado fora do Porto, a trabalhar, e só vinha a casa nos fins-de-semana. Então passava os fins-de-semana com ela e mesmo durante a semana, não estando fisicamente, falávamos muito ao telefone. De repente, esta pessoa deixou de estar. Acabou-se a sua presença. Acabou-se o tempo para ela e acabou-se o tempo com ela para mim.

Nos primeiros dias a pergunta que se impunha era “Como é que a vida continua depois disto?”. Nos dias seguintes a pergunta passou a ser “Como é que se continua a não ter tempo depois disto?”. E é algo a que não consigo responder. E isso angustia-me.

Como é que não se tem tempo se estamos vivos? Qualquer palavra pode ser a última, qualquer convite recusado pode ser o último, qualquer momento passado com amigos pode ser o último e ainda assim as pessoas continuam a não ter tempo! Como é que isto é possível?

 

Vivemos como imortais. Ela foi, nós não, por isso temos tempo. Amanhã dá. Para a semana ainda chega. Daqui a um mês vai muito a tempo. E se não for?

O tempo passado na companhia de quem mais gostamos é a coisa mais preciosa que temos na vida. É o tempo que passamos e aproveitamos com essas pessoas que atenua um pouco o sofrimento da perda. Enquanto cá esteve vivemos momentos juntos, partilhámos, falámos, rimos, chorámos, fizemos tudo. Quando a pessoa vai embora, a sensação de que aproveitámos todos os momentos que podíamos aproveitar é o que nos dá uma certa tranquilidade. “Enquanto cá esteve eu vivi e partilhei com ela a minha vida”. A tranquilidade vem daqui, a saudade de tudo o resto.

Tivemos as duas todo o tempo do mundo e agora como é que o mundo não tem tempo? Perante a morte e a ausência, como é que o mundo se atreve a não ter tempo? São perguntas, indagações que me inquietam e angustiam. O tempo foge de ter tempo!

 

Patrícia Leitão

 

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6.11.15

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Foto: Woman Showing A Cell Phone – Petr Kratochvil

 

Corre, corre, tenho pressa, isto é para ontem, o dia devia ter 30 horas e mesmo assim…

Andamos todos numa correria desenfreada contra o tempo, temos horários de trabalho de 35 horas semanais, semana americana, vivemos a era da tecnologia. Temos telemóveis, tablets, computadores, ipod e inúmeros gadgets para nos facilitar a vida, para nos darem tempo.

Esperava-se com a revolução industrial nos finais do século XVIII, início do século XIX, que novos modelos de sociedade, mais humanistas e éticos, surgissem. Com a ajuda das máquinas a substituir a mão-de-obra humana, o ser humano trabalharia um número reduzido de horas diárias com vista à satisfação das necessidades básicas, assegurando a sua sobrevivência e bem-estar. Passaria a ter mais tempo disponível para se dedicar a atividades mais nobres como a filosofia, a ética, a cultura e a arte, promovendo assim a evolução do ser humano. Foi um sonho lindo que acabou! O lucro fácil e rápido, a ganância, o poder do dinheiro alterou o rumo da evolução da humanidade.

Tornámo-nos escravos de uma sociedade comandada pelo capital. Onde tempo é dinheiro. Tornámo-nos escravos do tempo, de um tempo que se esvai segundo a segundo, que se escapa irrecuperavelmente.

Atualmente, vivemos na era da globalização, estamos 24 horas por dia, 7 dias por semana totalmente comunicáveis, conetados em simultâneo num mundo global. Apesar desta globalização, nunca estivemos tão solitários e desligados.

Chegou o momento de pararmos e pensarmos o que estamos a fazer de nós. Chegou a hora de pormos limites aos ladrões do tempo.

É este o instante para nos religarmos, a nós próprios e à natureza que nos rodeia. E relembrarmos que somos apenas mais uma espécie dos seres vivos existentes neste planeta, simplesmente mais uma partícula do universo.

 

Tayhta Visinho

 

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4.11.15

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Foto: Glass Cup With Tea – George Hodan

 

Não chores porque acabou.

Daqui a pouco tempo, que te parecerá muitíssimo, hás de sorrir porque aconteceu.

Não te perguntes “porquê”. Não te questiones. Acima de tudo não te ponhas em causa.

Não interessa. Agora não interessa nada e a verdade é que, tu sabes, nem sempre existe um porquê. Quase nunca existe um porquê. São muitos, são-nos aos montes.

E no final, mesmo que sem fim, não interessam para nada.

Há histórias assim, sem fim. Há histórias que terminam antes do final. Porque o fim já era. Foi sendo, foi findando. Não tem de haver um ”The End”, como não tem que haver uma razão, agora. Porque em nada te acrescentaria ter uma justificação e tirar-te-ia mais e mais, a ti que hoje te sentes tão pouco ou nada, tão triste e tão pequenina.

Mas não és. És enorme. És grande na tua força. Mesmo que não a sintas agora e nem saibas onde a ir buscar.

Vais encontrá-la. “Deus não nos dá sofrimentos sem nos dar forças para os suportarmos”. Aguentamos tudo, amiga.

E tu, que és imensamente forte no teu interior, no teu coração e nos teus valores, como linda pessoa que és, vais ultrapassar isto. Vais ultrapassar-te, superar-te. Vais crescer e aprender e ser melhor, como sempre soubeste ser.

 

Um dia, quando tudo passar, nem vais acreditar que doeu tanto.

Mas dói. Eu sei que dói.

Dói infinitamente e para sempre, sem o ser.

Não chores.

Não chores na alma por já não teres lágrimas para chorar. Choraste demais. Demasiadas vezes. E foi nessas lágrimas, em que te desfizeste e acabaste, que foi nascendo o fim.

Era o fim e tu já sabias, sem o saber realmente.

O fim vive na história e é toda a história que faz o fim.

Findaste-te e finaste de todas as vezes que a angústia e a tristeza te escorreram pela cara, pelo que não estranhes se as lágrimas agora secaram.

Hão de voltar.

Serenamente, e quando menos esperares.

 

Até lá, tens o meu colo. E o meu abraço. E o meu mimo.

Dou-te o meu colinho, sentado no meu sofá, ou no teu, ou onde tu quiseres, mas onde sabes que podes deitar a cabeça e as lágrimas, sempre que te apetecer. Sem cerimónias ou vergonhas, que a amizade também se veste de intimidade, de mimo, de segredos. E de choros, de riso ou de infelicidade.

 

Faço-te um chá, amiga. E um cafuné. E só não canto para ti porque sabes que não sei cantar, mas encho-te de música se assim quiseres, ou então fico em silêncio a escutar a tua ausência de palavras. Ou um monte delas, se as quiser dizer e partilhar.

E passo contigo este tempo, amiga, esse tempo que mesmo não sendo muito, sei que vai custar (-te) muitíssimo a passar.

 

Joana Pouzada

 

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2.11.15

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Foto: Tool Kit – Anna Langova

 

Há uma relação entre os tempos e o tempo. Ao que parece, temos hoje menos tempo do que noutros tempos tínhamos. Engendramos novas formas de vermos a nossa vida facilitada para, a seguir, a termos mais difícil que nunca. Queixamo-nos de que não temos tempo para nada, que o dia passa a correr, que estamos constantemente atrasados. Sacrificamos o sono, as refeições, a companhia dos amigos para podermos cumprir com a nossa agenda transbordante de compromissos. Nem calculadoras, nem telemóveis, nem computadores superpotentes nos livram da ideia de que estamos, quase todos, atrasados em pelo menos duas semanas em relação a tudo. Ah, duas semanas dariam agora tanto jeito!

Estamos tão mergulhados nos nossos afazeres que nem nos apercebemos que a idade vai passando. E a altura certa para fazermos certas coisas já lá vai há mais de duas semanas. É como se quiséssemos viver toda a vida num só dia, aqui e agora, condensadamente. É como se a vida se fizesse de coisas tão imediatas que só se destinassem a consumo. A contemplação, isto é, o ato de parar, sentir, interiorizar e refletir, é praticamente impossível nos dias que correm. A menos que o façamos em espaço próprio, climatizado, devidamente orientada por um instrutor credenciado, paguemos e possamos postá-la numa qualquer rede social.

O problema é não sabermos o que fazer ao certo com o tempo. É termos a sensação pecaminosa de que o tempo sem ocupação é tempo de vida desperdiçado, como se todos os segundos contassem.

Duas semanas dariam imenso jeito para fazermos tudo aquilo que está na prateleira à espera de tempo, como por exemplo telefonar ao amigo com quem já não falamos há mais de dois anos por falta de tempo, cortar as ervas daninhas que há mais de dois anos devoraram o jardim, ou devolver a chave-de-fendas ao vizinho que há mais de dois anos espera por ela e que, entretanto, optou por comprar um conjunto completo de chaves que servem para consertar tudo, poupar tempo e, ao mesmo tempo, porque a mala é pesada, não servem para nada.

Ter a vida em atraso permanente é consequência direta de duas condições: 1) criarmos mais necessidades do que aquelas para as quais teremos efetivo tempo de satisfazer e, 2) nem sempre fazemos o que temos que fazer na hora certa, até porque os nossos recursos energéticos são limitados e por vezes arreamos.

Com duas semanas atualizaríamos toda a vida. Mas no fim dessas, precisaríamos de outras duas.

 

Joel Cunha

 

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