Foto: Gun On Ground – Raki Halder
- Mata-o! Mata-o, ou serás tu a morrer! Mata-o, traidor! Ele é tão traidor como tu e por isso merece morrer! Se não for ele serás tu, verme miserável! Achas que ele te poupará quando eu lhe colocar a pistola na mão?! Achas que ele continua a ser teu amigo?! – gritou o capitão junto da orelha de M. e, de seguida, pousou-lhe a pistola sobre mão direita, aberta, dorida, ensanguentada, sobre a coxa, exausta.
M. conseguiu olhar R. pelas pequenas frestas que dolorosamente abriu por entre as pálpebras inchadas. Olhou R. e imaginou-o um espelho, devolvendo-lhe a provável imagem de si mesmo. Corpo magro de meses sem uma refeição capaz nem um sono tranquilo, dobrado sobre si mesmo, sentado numa cadeira, contorcido, roupas rasgadas e empapadas em sangue, descalço, pele escurecida pelo sangue seco e pela sujidade arrancada ao chão. No lugar da cara uma área tumefacta, disforme, vermelha.
O capitão recuou, colou-se à parede junto a um dos soldados que, segurando as armas, preveniam algum imprevisto. Aproveitou o tempo que dera a M. para que decidisse matar ou morrer, para descansar um pouco. Estava há já duas horas ali, a bater-lhes, a torturá-los, a quebrá-los como eles mereciam pela sua condição de vermes, de traidores, de estalinistas. Tentou respirar profundamente, procurou acalmar-se.
Pela cabeça de M. passou rápido o filme de uma boa parte da sua vida, aquela maior parte em que ele e R. foram amigos. Desde o primeiro dia de escola, os pais, as borgas, as namoradas, os casamentos, os filhos, a guerra. Sempre a guerra, inevitável, a marcar os tempos, a marcar os homens, como se fosse uma necessidade básica junto com respirar, dormir ou comer. Lutaram juntos contra os alemães. E agora estavam ali, em Goli Otok, porque o marechal Tito resolveu mudar de amizades, decidiu impor-se. Sabia que aquela história só poderia acabar mal, que o capitão faria com que pelo menos um deles morresse. Naqueles meses tinha entendido como era colocada em prática a “correcção moral”: pais a matarem filhos, filhos a matarem pais, irmãos a matarem irmãos, amigos a matarem amigos, como teste ao seu arrependimento, como prova de que tinham sido quebrados. A reeducação consistia em liquidar toda a dignidade e toda a humanidade aos traidores corrigidos. E agora era a vez dele e do seu querido R..
O corpo de R. não aguentava mais pancada. O seu ser também não. R. sabia ser bem mais fraco do que M. e pensou o que faria se M. vacilasse, se o capitão fizesse aquilo que disse, se colocasse a pistola na sua mão. Dispararia sobre si próprio, sem hesitações, acabaria com aquela tortura e salvaria o seu querido M., ali e para o resto da sua vida que desejava fosse muito longa e sem culpa. R. sabia que nunca suportaria viver com a culpa de ter matado M., mesmo naquelas circunstâncias, mesmo no limite da sobrevivência. Antes a morte.
O capitão fechara os olhos e assim evadira-se daquelas paredes, daqueles muros, daquela ilha maldita. Estava há um mês sem ir a casa, tantos eram os traidores, assim o coronel lho exigia. Estava exausto. Desejou, como nunca acontecera antes, o calor e o perfume dos braços da sua amada F..
M. apertou a mão e sentiu o conforto frio do corpo metálico da pistola. Olhou para R. que permanecia imóvel, como se estivesse já morto. Sabia que o seu amigo era mais fraco. Procurou fixar-se nessa diferença. Esta decisão era o exercício mais requintado da tortura que o capitão lhe infligira, o maior desafio à imaginação. O instinto vital impelia M. a disparar sobre R. e assim sobreviver, acreditando que o capitão o deixaria partir já na condição de corrigido moral. Mas como seria o depois? Como viveria o resto dos seus dias corroído pela culpa? E se nada fizesse, permitindo que o capitão invertesse o jogo, como jogaria R.? Ao empurrar para R. a segunda jogada, deixaria ao seu amigo apenas a hipótese de disparar e matá-lo. E então como seria o depois, como lidaria R. com a culpa da sua morte? M. sabia que R. não aguentaria, que sucumbiria destroçado.
O capitão regressou lentamente. Abriu os olhos e tudo continuava imóvel como se o tempo tivesse parado.
- Porra para estes sacanas traidores! – ralhou para dentro de si, aproveitando o impulso para se arrancar à parede que sentia reconfortante como uma cama com lençóis de seda. Aproximou-se de M. e gritou:
- Mata-o, sacana! Mata-o, ou morres! Despacha-te! Tenho mais coisas para fazer!
T. recebeu, acarinhou e cuidou de M., quando ele, três dias depois, regressou a casa. Amou-o ainda mais do que antes.
L. chorou e doeu-se pela perda e pela saudade de R.. Contida a dor, feita a saudade companheira fiel, retomou a sua vida, mas continuou a chorar. Chorava, não por ódio, não por desejo de vingança, mas pela pena que sentia de M. e de T., pela cruz que eles arrastariam por toda a vida. Sabia que M. fizera a escolha mais difícil e estava-lhe agradecida.
Desde que M. levantou aquela arma, até ao instante em que partiu, dezasseis anos passados e completamente quebrado pela culpa, da sua boca não saiu uma única palavra.
L. chorou e sentiu compaixão. Compaixão pelo destino de M., compaixão pelo instante em que ele fez uma escolha, podendo ter feito outra.
T. continuou a amar M..
Nota: Texto inspirado em “Anima Mundi” de Susanna Tamaro.
Fernando Couto