É, até certo ponto, desconcertante pensarmos nas dualidades ou realidades opositivas que, naturalmente, nos sugere a ideia ou imagem de Um vs Mundo. E é, precisamente, também esse o interesse do desafio da escrita, seja ela mais técnica ou mais romanceada.
A construção do sentido está inerente à condição do percetor, ainda que o significado do que é dito possa ter raiz simbólica diferente para quem o escreve ou cria, abrindo, assim, espaço e dando liberdade heurística ao seu público. É, por isso, a criação intelectual um dos maiores exercícios de assunção e concessão democráticos.
Quem somos está presente em tudo que nos rodeia, o âmbito circunscrito do ambiente em que circulamos e nos manifestamos. Mas isso não quer dizer que quem somos ou o que façamos seja pequeno ou insignificante. Somos agentes sociais, naturalmente.
Por altura em que tomei conhecimento de qual seria o tema deste mês para o blogue Mil Razões…, encontrava-me, ainda, impactada por um vídeo a que assisti, o qual se enquadra, perfeitamente, nesta conceção de Um vs Mundo, ainda que não tenha como cunho a divergência, mas, pelo contrário, o abalo positivo que nos causa a compreensão humana, a renovação, a paz de espírito, o perdão, o exemplo.
O cenário é-nos dado pela história real de um assassino em série (serial killer) que, após confessar a morte de 48 mulheres, foi condenado à prisão perpétua, em dezembro de 2003. De forma a mostrar os danos originados por tais atos tresloucados, o tribunal permitiu que, perante o culpado, as famílias pudessem expor as expetáveis emoções antagónicas, negativas, que estas experimentavam em relação a ele e aos seus atos. No entanto, a face do culpado mantinha-se inalterável, sem a manifestação da mais ínfima expressão de remorso ou arrependimento, situação, aliás, típica do universo emocional e mental de sociopatas. Expressões como “É um animal!”; “Espero que morra com muito sofrimento e crueldade!; “ Que vá para o inferno!” eram bem reveladoras do ódio que pairava naquela sala de tribunal. Até que surge um senhor, cuja filha tinha sido uma das vítimas, e desmancha a máscara insensível e imperturbável do culpado com uma bondade que nos toca. E é nesse momento que a comoção aparece, quando é surpreendido pelo discurso desse pai. Vale a pena transcrevê-lo:
- Senhor Ridgway, há pessoas aqui que o odeiam. Eu não sou uma delas. Você tornou difícil viver de acordo com o que eu acredito. E isso é o que Deus diz para fazer, que é perdoar. Você está perdoado, senhor.
Eu não sou religiosa. Considero que, neste caso, não é essa sequer a questão mais relevante. Este pai precisou rever suas ideias, valores e pressupostos para conseguir permanecer em paz com ele mesmo e conciliar suas convicções com o desapego que uma nova situação estava a exigir dele. Perdoar não é só possível, como desejável, e altamente libertador.
Somos muito mais quando construímos.
Marta Silva