29.8.14

 

- Eu não deito papéis para o chão.

- Mas isso é ser civilizado, não achas Joaquim?

- Eu ajudo a minha avó a calçar os sapatos.

- E quando o Luís ajuda a avó… está a ser atencioso.

- Eu gosto muito dos animais e fico triste quando alguém lhes bate.

- Ainda bem, Tiago. Mostra que és sensível e delicado.

- Mas eu perguntei ao Joaquim se o cão dele estava melhor e ele não me respondeu…

- Foste amável com o Joaquim. Foi pena que ele não tivesse correspondido ao teu gesto. Se calhar não ouviu.

- Eu digo bom-dia ao senhor do autocarro e ele também me diz.

- És respeitador, Manuel. E o senhor do autocarro também. Mas está na altura de relembrar o desafio que vos lancei: dêem-me exemplos da vossa boa-educação.

- Eu não digo palavrões. Quer dizer, quando estou muito, mesmo muito chateado digo “que caraças!”. Mas é só isso e é dito baixinho.

- Pois é André. Tu és um rapaz decente.

- Eu fico triste por ver meninos com fome, e ver meninos na guerra e a chorar e sem escolas como a nossa e tudo isso.

- O que demonstra que o Caio é solidário. Vamos lá, mais um pequeno esforço. Eu sei que vocês são bem-educados e que me podem dar exemplos da vossa boa-educação.

- Eu às vezes ofereço uma flor aos meus pais. Mas é só quando eles me dão uma prenda ou um chocolate ou assim uma coisa de que eu goste muito.

- O teu gesto é simpático. Um dia, experimenta oferecer-lhes uma flor sem receber nada em troca.

- Eu brinco com todos os meninos da mesma maneira. Há lá um menino que é de Timor, outro que é de Angola e outro só tem uma perna. A minha mãe até me disse que ele nasceu assim e vai ficar sempre assim.

- Sabes o que tu és? És um menino bem-formado.

- Eu não atravesso a rua fora das passadeiras e não faço birras. A minha mãe também não. O meu pai e a minha irmã às vezes atravessam um bocadinho fora das passadeiras.

- Tu e a tua mãe são disciplinados e ordeiros. Explica ao teu pai e à tu irmã o que devem fazer.

- Eu leio muitos livros.

- Vais ser uma pessoa instruída, o que é muito bom. Pede aos teus pais para te darem livros bem escritos, com temas interessantes e próprios para a tua idade. Então, não há mais exemplos?

Gerou-se um burburinho na sala, correspondente ao silêncio comprometido dos adultos e por fim falou a Luísa:

- Eu acho que afinal nós não somos bem-educados.

- Estás enganada, Luísa. Cada um de vós deu um exemplo. Certamente escolheram aquele que consideram ser o exemplo mais importante e a turma, no seu conjunto, acaba de dar o significado completo do que é ser bem-educado. Na verdade, ser bem-educado é ser civilizado, ser atencioso, delicado, amável, ser respeitador, decente, solidário, simpático e bem-formado, ser ordeiro e instruído. É aprender das vossas famílias e dos vossos professores a maneira mais correcta de conviver com as outras pessoas, os animais, as plantas e a natureza em geral. Estou muito contente e orgulhoso dos meus alunos.

 

José Quelhas Lima

 

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27.8.14

 

Começar a pensar em Educação traz-me longas horas de reflexão, desligada de tudo.

Faz-me pensar nos caminhos que escolhi e na forma como fui educada para os escolher.

Analiso o meu dia-a-dia com detalhe pois todo ele gira em torno daquilo a que chamamos aprendizagens.

Infelizmente, confronto-me com situações em que as pessoas não têm noção de que tudo o que fazemos como adultos será copiado pelos mais novos.

Cabe aos mais próximos a responsabilidade de transmitir o conhecimento que nos dá ferramentas para a vida, mas cabe aos que vivem ao nosso lado ou que se cruzam connosco em algum momento da vida, dar o exemplo também.

É pesado este fardo, mas ao mesmo tempo bonito pois faz-nos ser pessoas melhores se quisermos que as gerações futuras sejam melhores, se nos importarmos com isso.

É satisfatório quando, a longo prazo, o nosso esforço de sermos naturalmente boas pessoas é compensado com boas ações de quem nos viu, de quem cresceu e aprendeu connosco.

Isto para quem se importa, claro…

Isto para quem pensa sobre isso e tem noção que cada passo e movimento, cada decisão ou ponderação estão sempre a ser observados e assimilados por alguém.

Parece simples e até é. Basta termos esta consciência enquanto lidamos com crianças.

Com adultos é que eu me preocupo mais… Não compreendo como chegar até eles. O caminho é tão mais longo…

Já não são tábuas rasas, já têm muitas aprendizagens que influenciam totalmente qualquer área da vida.

Mas exatamente por ser assim difícil é que se torna mais valioso. Têm tanto para ensinar, para demonstrar como a educação modela todo o nosso percurso e forma de estar.

Pensar sobre educação deixa-me assim, a pairar sobre todas as atitudes e comportamentos que me rodeiam, incluindo os meus…

 

Sónia Abrantes

 

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25.8.14

 

Valéria entrou atabalhoadamente na pastelaria. Atrasada, como em todos os encontros. A Isabel já não estranhava e olhou placidamente para a amiga, ao mesmo tempo que sorvia um aveludado e aromático cappuccino.

- Bom dia, amiga! Chegaste há muito tempo?

As amigas abraçaram-se entre sorrisos e Isabel introduziu a sua companhia:

- Valéria, desta vez consegui convencer a Rute a juntar-se ao nosso pequeno-almoço mensal!

- Mas é uma vez sem repetição! – afirmou, convicta, a jovem, enquanto trocava um par de beijos cordiais com Valéria.

- Então, porquê? Somos assim tão más companhias? – ironizou Valéria. Isabel abriu um riso rasgado.

– Nada disso, Valéria! Aqui a Rute é de poucas palavras, mas o que ela quer dizer é que não quer vir intrometer-se no nosso encontro de amigas. E já para a trazer hoje, teve que ser de arrasto!

- Não há problema nenhum, Rute. Assim, até temos mais tema de conversa…

Valéria procurou imprimir um tom descontraído a estas palavras, que em nada correspondiam à verdade. Ela tinha mantido a esperança de que Isabel não fosse encontrar tão cedo uma inquilina para partilhar o apartamento, pois imaginava-se a perder o título de melhor amiga quando Isabel passasse a conviver diariamente com outra rapariga, seguramente mais divertida e interessante do que ela própria.

Mas a inquilina apareceu, e nas últimas conversas Isabel ia fazendo cada vez mais referências à sua nova companheira de casa. E ali estava ela, com uma presença tão marcante que roçava a arrogância. Procurou marcar território:

- Então, estás a adaptar-te bem ao estilo tresloucado desta minha amiga?

Isabel desatou a rir.

- Eu não sou tresloucada, sou criativa! Só porque a minha casa não segue os padrões de organização estabelecidos pela sociedade, não significa que não esteja bem!

Rute assentiu com a cabeça e acrescentou:

- Há que respeitar o estilo de vida de cada um. E nós estamos a entender-nos muito bem nesse sentido.

- É verdade! Cada uma trata do seu quarto, cada uma tem um lado do fogão, as suas prateleiras do frigorífico… um casamento feliz! – rematou Isabel, piscando o olho a Rute.

Valéria ouviu as duas com um misto de espanto e desconforto. Isabel geria a casa um pouco como geria a sua vida, no improviso, e Valéria acreditava que isso dificultaria a missão de arranjar alguém para dividir a despesa pesada do pequeno T1+1. Talvez por isso, ou talvez para agradar, ela nunca tinha dito diretamente à amiga que seria incapaz de viver em semelhante pardieiro. E agora aparecia esta… personagem a concordar com tudo como se fosse normalíssimo?

Felizmente, Isabel alterou o rumo da conversa:

- E como estão os teus miúdos?

Depois de pedir uma meia de leite de cevada e uma torrada, Valéria suspirou e desabafou:

- Olha, vão bem, do ponto de vista físico. Mas estão ambos a passar por uma fase verdadeiramente difícil! Birras, teimosia, conflitos constantes com coisas tão simples como o que comer ao pequeno-almoço, ou que sapatos calçar, que transformam o nosso dia a dia num desafio! E depois o Miguel…

- Não me digas, o Miguel também anda birrento? – indagou Isabel entre risos.

- Eu e o Miguel não nos entendemos na forma como havemos de reagir a estes comportamentos desviantes dos miúdos. Ele fica furioso quando eles se portam mal, e eu também não gosto, é claro. Mas o Miguel acha que tem que os disciplinar pelo castigo e pela bofetada. Ora eu não concordo, e daí a bocado, em vez de estarmos a controlar uma birra ou a corrigir um mau comportamento, estamos a discutir um com o outro: eu a reclamar que ele está a exagerar e ele a acusar-me de ser permissiva e de deixar os miúdos fazerem tudo o que querem…

- Está complicado, então… - Isabel não sabia bem o que dizer. Ela conhecia bem os filhos de Valéria, David e Bea. O mais velho, com 9 anos, era um miúdo querido e sossegado mas um tanto ou quanto mimado. E o nascimento da irmã tinha vindo acentuar esse comportamento. Do alto dos seus 3 anitos, Bea tinha tanto de amorosa como de intempestiva. Com uma personalidade bem vincada, tão depressa estava a rir à gargalhada como a seguir se atirava para o chão a espernear entre gritos. Não invejava a amiga, apesar desta estar constantemente a realçar as alegrias da maternidade, procurando convencê-la a seguir o mesmo caminho. Mas, sempre que lhe telefonava para casa, encontrava-a no meio de gritos ou queixumes dos miúdos, ou sem fôlego, afogada em tabuleiros transbordantes de roupa para passar, planeamentos de menus semanais ou limpezas aborrecidas. Ufa! - como apreciava a sua liberdade! Mas, por amizade a Valéria, esforçava-se por mostrar interesse nos seus dramas familiares.

Procurava as palavras certas para consolar a sua amiga, quando Rute interveio:

- A educação é um processo em que ambos os pais têm que remar para o mesmo lado, senão ficam à deriva.

“Que bela verdade de La Palisse!”, vociferou mentalmente Valéria. As suas faces ruborizaram-se de irritação e Isabel, apercebendo-se disso, aligeirou:

- Eu cá não sei o que faria, mas será que tu e o Miguel não podem sentar-se e definir, para cada birra dos miúdos, uma ação concreta com a qual ambos concordem? Do tipo: Se o David não se sentar a tomar o pequeno-almoço quando o mandam, não pode escolher os cereais que põe no leite.

- Fosse assim tão simples, Isabel! A questão é que nós temos perspetivas completamente opostas neste campo. Ele é muito rígido, eu sou mais flexível. Eu sou a favor de mantermos a calma e tentarmos conversar com os miúdos para eles perceberem o que se espera deles. Já o Miguel espera que um “Não!” seja ouvido como ordem irrefutável e que eles obedeçam cegamente e, como quase nunca o fazem, ele aplica-lhes logo um castigo quase sempre desproporcionado. E então quando lhes levanta a mão, eu passo-me dos carretos!

- Então, és contra os castigos corporais? – perguntou Rute.

Valéria manteve-se em silêncio durante alguns segundos, em parte porque não lhe apetecia falar com aquela gatuna de amigas, em parte porque não sabia bem o que responder. A sua voz soou mais trémula do que desejava:

- No geral, sim. Quer dizer, eu não vou dizer que já não tenha dado um ou outro calduço aos meus meninos quando eles passaram das marcas, mas a verdade é que o bater é uma reação normalmente irracional e de descontrolo mental. E eu acredito que uma palmada deve surgir após reflexão e quando nos apercebemos de que, naquele momento, não há mais nada que possamos fazer para travar um mau comportamento.

- Mas todas nós que aqui estamos levámos, com certeza, umas palmadas em crianças e isso colocou-nos na linha, não? – sugeriu delicadamente Isabel.

- Antigamente fazia-se muita coisa errada, Isabel! Não podemos ir por aí! – Valéria apoiou a cara entre as mãos, cotovelos na mesa, ladeando a torrada que ia amornando e suspirou:

- Mas às vezes, nem eu sei o que é melhor, mais correto… O que sei é que não suporto ver o Miguel ralhar-lhes desmesuradamente, principalmente ao David, que já tem idade para participar num diálogo. Além de que não o podemos anular como pessoa que é!

- E então, os teus métodos baseados no diálogo obtêm bons resultados? -  questionou Rute, genuinamente interessada.

- Resultados? Os resultados não são visíveis no imediato, acho eu… Isto é como uma semente que se lança e vai crescendo… Mas é muito frustrante lidarmos com as mesmas birrinhas todos os dias, repetirmos vezes sem conta as mesmas coisas… Parece uma conversa de surdos.

- Lá está, se calhar o problema está aí. Tu pretendes fazer da relação com os teus filhos uma democracia quando, na realidade, se está a transformar numa ditadura. E são eles no papel de ditadores, não?

Valéria sentiu-se acossada com a crueza daquelas palavras. Detestava aquela rapariga e a altivez com que tecia os seus comentários. Sabia lá ela o que era viver em permanência nos dilemas carinho / autoridade, negociação / obediência… Ser educadora, progenitora, amiga, vigilante, confidente, parceira de brincadeiras e gerir tudo isso com uma postura concreta em cada um desses papéis, era complexo ao ponto de extenuar! “Mas que espero eu desta conversa? Respostas às minhas dúvidas?” Farta de teorias estava ela, que já tinha lido meia Internet subordinada aos temas da parentalidade e meia dúzia de livros sobre educação. Não podia esperar respostas úteis de quem não tinha ainda a experiência e, consequentemente, possíveis soluções. Sim, que ela, como mãe de dois, já sabia dar respostas a questões como “O que fazer se a criança não quer comer a sopa?” ou “Como se faz o desfralde do bebé?” Mas quantos filhos precisaria ela de ter para encontrar a fórmula certa para lidar com birras, impertinências, desobediências e asneiras? E, mais do que isso, fazer com que o pai estivesse de acordo?

De qualquer modo aquela era uma conversa que não valia a pena ter ali. Não com Isabel e Rute. Ao mesmo tempo que pensava tudo isto, em catadupa, abocanhou uma tira de torrada já fria e comentou, encerrando o assunto:

- Realmente, olhando para a realidade mundial, dá mesmo para concluir que a democracia é um regime inoperante! Assim que saia daqui, vou comprar uma colher de pau, que era assim que a minha mãe me punha na linha! E por falar em colher de pau, Isabel, sempre queres ir ao Ikea no sábado? Nós vamos cedinho; se quiseres boleia tens que te mentalizar que às 09h00 estamos a passar em tua casa!

- Às 09h00?! A essa hora só se for de pijama! Que dizes, Rute, vamos aproveitar a boleia?

 

Sandrapep

 

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22.8.14

 

Este ego que perturba

Este ego que vai à conquista

Este ego que perdura

Que encruzilha a nossa vida

Com a certeza que é o Senhor da única verdade

Este ego corajoso que não desiste

Que nos leva ao sofrimento quando não saiu vitorioso

 

Quando nos sentimos atacados ele responde com ataque

Quando nos sentimos injustiçados ele responde com injustiça

Quando nos sentimos magoados ele responde com mágoa

Quando nos sentimos traídos ele responde com traição

 

Reações estas que nos envolvem em dor, angústia, incompreensão e tristeza e se continuarmos a alimentar esta postura vamos atrair mais do mesmo para a nossa vida...

Então que tal começarmos a educar o ego, ensinando-o a Amar, a aceitar, a perdoar e a sorrir...

Oferecer esta magnífica experiência ao nosso amigo mais íntimo leva tempo e nem sempre vamos conseguir que ele nos ouça. Mas aos poucos e com a consciência de que a Paz Interior é alcançável, vamos ser abençoados com um ego doce.

A mestria está em aplicar, na experiência de quem escolhemos ser, os mais nobres e elevados ensinamentos de Deus.

 

Joana Pereira

 

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20.8.14

 

Ando “kitada”. Para todo o lado carrego um “kit” de princípios e regras que me definem e regem o meu comportamento e a minha relação com os outros. Ao afirmar que carrego um “kit”, não se entenda com isso que pretendo aliviar-me dele, pelo contrário, procuro nunca o perder de vista e ser fiel a esses princípios e regras. Alguma alteração ou cedência que processe, faço-o na convicção de os aperfeiçoar.

Sinto uma enorme gratidão, princípio que faz parte do meu “kit”, e quero homenagear os meus primeiros e principais educadores, a minha família. Gente simples, com tradições, que me deixaram em herança princípios de grande humanidade. Lá onde vivíamos, lembro-me de ouvir comentar a seriedade do meu avô, a capacidade de trabalho da minha avó, a amizade da minha mãe e o respeito dos meus tios. Os seus exemplos de vida foram o método mais simples, direto e eficaz de desempenhar o papel que lhes competia e que nunca se escusaram fazer: educar-me.

Nunca senti neles medo, dúvidas ou cansaço no desempenho dessa tarefa. Faziam-no sem ansiedade, com saber e segurança e por isso os seus ensinamentos não me sufocavam nem me oprimiam, davam-me confiança. Tudo se processava de uma forma tão natural que não me deixavam margem para dúvidas sobre a informação a reter. Educar era simples, era uma rotina que consistia em acompanhar e mostrar como se devia estar e fazer.

Não me traumatizaram as vezes repetidas em que me ensinaram a deixar o pão na mesa depois das refeições, sempre com a parte superior virada para cima, tapado com uma toalha muito própria para depois, e só depois, apagar a luz caso fosse noite. O que é que este exemplo insignificante valeu na minha formação pessoal? Aprendi com ele a respeitar. O pão, fundamental na alimentação de então, era produto de um trabalho cheio de sacrifícios, por isso, havia que valorizar e cultivar o sentimento de estima por algo conseguido e por alguém que o conseguiu. Eu compreendia esse ritual e aprendi a respeitá-lo. E o respeito pelas pessoas e pelas coisas que o merecem é outro dos princípios, muito importante, que meti e transporto no meu “kit”.

Nunca questionei porque é que à mesa o meu avô era servido sempre em primeiro lugar e porque lhe era dado o melhor que havia, ainda que ele não o comesse sozinho e repartisse com todos. Com isso, aprendi a partilhar e a hierarquizar.

Eram solidários, apesar de não conhecerem a palavra solidariedade - é uma palavra jovem, mas mostraram-me que os mais desfavorecidos e debilitados não precisam da nossa arrogância mas da nossa bondade e que a miséria humana não é uma condição mas uma circunstância que devemos ajudar a resolver. Eles assim o faziam.

Ensinaram-me uma vez e hoje ainda pratico o pequeno gesto de me desviar ou descer o passeio quando me cruzo com alguém de idade avançada ou com mais dificuldade em se movimentar do que eu, facilitando-lhe a passagem.

São muitos os exemplos que guardo, não conseguiria enumerá-los a todos mas a ideia que quero passar, e que retenho também para mim, é que eu não seria a pessoa que sou hoje se não tivesse essas referências.

A melhor maneira de lhes mostrar a minha gratidão por tudo e tanto que me ensinaram é empenhar-me em passar ao meu filho o “kit” que herdei. Enche-me de alegria saber que ele valoriza este legado.

Ainda que não partilhem desta minha visão sobre educar terão que respeitá-la, porque assim mandam as regras da boa educação.

 

Cidália Carvalho

 

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18.8.14

 

O cérebro é uma gaveta aberta: recebe; codifica; descodifica; guarda e; emite códigos, imagens, memórias e mensagens. A gaveta não enche… tem sempre lugar para muito mais. Somos a informação que recebemos com a respetiva codificação, descodificação e significado que cada um lhe atribui. Educar implica criar condições para que a pessoa se desenvolva. Que condições são essas? Condições afetivas; familiares, comportamentais…, todas as condições para o viver humano e ser pessoa. A gaveta deve estar aberta. E quando ela não abre? Às vezes só abre se alguém substituir a fechadura e fizer nova chave. Quem é esse alguém? A própria pessoa da gaveta que não abre? Uma ou mais pessoas externas? Talvez em conjunto, porque educar é estar com…; é fazer com…; é sentir com…; é descobrir com... Quando se tenta comprar uma fechadura e uma nova chave, criam-se condições para abrir a gaveta e, então, geram-se também condições para a codificação, a descodificação e a atribuição de significado ao que a gaveta recebe. Educar é uma tarefa imensuravelmente difícil, porque nem sempre se consegue criar as condições necessárias e imprescindíveis para que o processo aconteça.

 

Ermelinda Macedo

 

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15.8.14

 

Sol, calor, hora de almoço, cidade, mobilidade.

Paragem de autocarro. Autocarro chega. Pessoas entram. Menino entrou. Mãe entrou. Jorge também. Indigente também.

- Olha, o maluco também vai entrar! - disse menino. Mãe admoestou.

Jorge sentou. Indigente perguntou:

- Está ocupado?

Jorge disse:

- Não. – indigente sentou.

Viagem prossegue.

Indigente monologa. Indigente observa. Observa pé. Pé direito. Infeção nasce. Nasce no pé. Pé de indigente. Pé magro. Pé sujo.

Indigente monologa. Indigente observa. Observa mão. Mão direita. Golpe no dedo. Dedo indicador. Canivete. Canivete abre golpe. Golpe sangra. Indigente limpa. Indigente cuida. Cuida mão. Mão suja.

Viagem prossegue.

Indigente monologa. Indigente adormece.

Jorge vai sair. Jorge levanta-se. Jorge não pode passar. Caminho barrado. Pernas de indigente barram. Jorge olha indigente. Indigente dorme. Jorge toca perna do indigente. Indigente acorda. Indigente percebe. Indigente diz:

- Desculpe! – indigente afasta pernas.

Jorge passa. Viagem prossegue.

Lenço de papel. Lenço no chão. Chão que Jorge deixou. Indigente pergunta:

- Desculpe. Este lenço é seu?

Jorge responde:

- Não. Obrigado.

Dois passageiros. Outros dois. Levantam voz. Um:

- Olha-me este!

Dois:

- Se fosse dinheiro não perguntavas…

Indigente pergunta:

- Que têm com isso?

Resposta veio. Um:

- Não te estiques!

Indigente explica-se:

- Perguntei por educação, por gentileza, por cortesia, para ajudar. O lenço poderia ser do homem e fazer-lhe falta! Que fiz de mal?

Dois:

- Estás aqui, estás a levar um murro!

Paragem chegou. Autocarro parou. Jorge saiu.

Jorge pensou:

- Suspeito costume a bordo. Eliminem rapidamente suspeito. Sujo. Roupa rota. Cheira mal. Mexe consciências. Faz descarregar frustrações. Delinquente à força. Intolerável!!!

 

Fernando Couto

 

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13.8.14

 

Sempre me perguntei o que é que levará um jovem a entrar na delinquência. As causas e as explicações são já conhecidas, tudo à volta deles parece conduzi-los apenas para um caminho, mas ainda assim, o que os leva a entrar nele? Não terão eles a escolha de dizer que não, de recusar e tentar outro? Será assim tão fácil fazê-lo quanto se escreve ou quanto se fala?

E quando entram na delinquência tornam-se seres frios, insensíveis e sem qualquer compaixão pelos outros seres humanos? Será que se tornam indiferentes e alheios à dor que causam? Será que não têm arrependimentos ou crises de consciência?

Sempre que ouço notícias ou relatos de atos delinquentes, a primeira coisa que penso é “O que será que esta pessoa sentiu ao fazer isto?”. Quando estava a assaltar ou a bater ou a destruir e a vandalizar, será que isso lhe deu prazer? Sentiu-se imbatível e com o poder nas mãos? Será que depois quando vai para casa e se deita na cama pensa no que fez e se arrepende e sente um peso no coração? “Como fui capaz de fazer isto?” será uma pergunta que assalta a sua mente e a sua consciência conforme acabou de assaltar uma pessoa ou uma propriedade? Ou será que já nem consciência tem e tornou-se apenas uma máquina de fazer maldades e espalhar o medo?

O que me intriga na delinquência é isto, é esta mutação no ser humano. O que lhe dá origem e o que ela pode operar numa pessoa. Esta mutação torna-se ainda mais perigosa porque começa a ocorrer na idade jovem, no início de um percurso para a idade adulta, numa altura em que os jovens despertam para a vida conscientes de que agora eles já podem fazer, já podem ser e já podem acontecer. Esse já é que lhes dá o poder e a sensação de liberdade.

Uma vez disseram-me que, se um dia fosse assaltada, para olhar bem fundo nos olhos do assaltante, porque iria perceber que, provavelmente, ele estaria com mais medo do que eu. Será verdade? Será que ainda sentirão medo e culpa e arrependimento? Se assim é, nada estará perdido, pode ser um ponto de partida para a mudança. Ou será que a delinquência é como um fato de super-herói? Veste-se, assume-se uma nova identidade (ou o outro lado da pessoa) e faz-se tudo com toda a coragem e sem medo nenhum?

A delinquência passa a ser um crime muito maior quando deixa de haver espaço para a culpa, para o arrependimento ou para a compaixão pelo outro. Não havendo espaço para despir o fato, ele cola-se à pele e já nem o arrancando ele sai. Esta deformação é o que a delinquência tem de mais aterrador.

 

Patrícia Leitão

 

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11.8.14

 

Confesso que torci o nariz quando me apresentaram o tema. Quando era miúdo, delinquência significava perder para os gunas o dinheiro que tinha comigo. E houve uma fase em que corria o risco de perder as Air Jordan que os meus pais, a custo, tinham dado. E era isto... Os gunas não frequentavam a minha escola, logo, a delinquência era algo estranha, passível apenas de acontecer fora de portas e, mesmo assim, quando desacompanhado da presença de um familiar. Pouco mais tarde descobri afinal que a delinquência era transversal à sociedade portuense. E não tinha apenas a ver com a falta de status social ou poder económico. Muito pelo contrário! Na referida escola (colégio), por sinal uma das mais caras no Porto à data, entrou um rapaz mais velho. Um repetente. Um skinhead consumidor e com historial de violência. Um delinquente! Nesse tempo podíamos distinguir diversas tribos sociais que, diga-se, não nutriam muito amor entre si. Skins, góticos, rockabillies, gunas, betos, punks, etc.. Curiosamente, posso afirmar que a maioria dos seus membros, pelo menos ali pela zona da Boavista – Carvalhido – Foz, pertencia a famílias de classe média, média/alta. E que delinquência praticavam então estas tribos na sua generalidade? Roubos, violência gratuita, consumo de drogas, tráfico das mesmas. Basicamente era isto... Se não queria confusões bastava não me meter numa tribo dessas, não andar sozinho pelas traseiras do Shopping Brasília, pela ribeira, ou Costa Cabral à noite, etc.. As regras eram claras. Convivia com a delinquência e convivia com alguns delinquentes, para os quais eu era como a Suíça. O tipo inócuo. Claro que não pretendo afirmar que a delinquência que havia nesses tempos era “só” esta. Claro que nos bairros problemáticos haveria outra delinquência, talvez bem pior e mais violenta. Mas essa, para mim, não existia.

Passou a existir na minha idade adulta. Por questões de trabalho e também de curiosidade / fascínio. Como viveriam outras pessoas? Que fariam no seu dia a dia? Como pagariam as suas contas? As respostas a estas perguntas vieram de forma rápida. Fui ao Tarrafal, trabalhei no Lagarteiro, conheci habitantes do Aleixo. Apenas exemplos... Alguns foram/são delinquentes, outros não. Passei a entender a delinquência como mais “dura”, mais “necessária”. O termo “gratuito” quase que desapareceu e deu lugar ao termo “vivência”. Assim... normal... A delinquência, no meu entender, orienta muitas pessoas na sua relação consigo. Com os outros. Mas atenção! Continua a não gravitar apenas na esfera dos estigmatizados! Relembro, com atenção, o caso mais ou menos atual dos gangues de Cascais. Voltando à minha realidade... Conheço pessoas que serão consideradas à luz da Lei como delinquentes. Dou-me com elas e escuto as suas histórias. Não me inibo de lhes dar conselhos e mostrar que, tal como eles me mostram, existem outros caminhos para a solução dos seus problemas. Escrevi solução, não foi? Pois... Quando quase todas estas pessoas não têm emprego, vamos deixar a frase com “outros caminhos para os seus problemas”. “Delinquência necessária” – termo algo difícil de engolir, principalmente se envolver diretamente vitimização de terceiros...

Existe contudo uma delinquência que é bem mais grave e intolerável. Essa sim, desnecessária, que mói, dói e vitimiza terceiros. É uma delinquência que não tem esse nome nos jornais. Uma delinquência em que faltam as tattos (tatuagens), os manos (amigos), os paus (euros) e os pits (pitbull). Mas em que estão lá os amigos e os euros. Em que são precisos 4,9 mil milhões de paus para tapar a vergonha de colarinho branco... Para esse tipo de delinquência que todos nós conhecemos, não tenho eu paciência nem perdão. Cidadãos portugueses, dos quais bem conhecemos os seus nomes, são os verdadeiros merdas desta sociedade. Os verdadeiros gunas. É que para além do meu dinheiro e das sapatilhas, muito facilmente me levam a casa também. E com estes, ao contrário de outros, está difícil de se conseguir conviver.

 

Rui Duarte

 

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8.8.14

 

É aceite que o “delinquente” é-o porque as condições foram propícias. Talvez porque a família mostrou-se incapaz de educar e não teve o efeito pretendido de transmissão de valores. A figura paterna, mesmo que às vezes “presente”, mostrou-se ausente. O jovem não sentiu o “controlo” desejado. As “regras” e os limites estavam mal definidos. Estes jovens habitualmente sentem-se desajustados no seio familiar e veem-se numa relação de distanciamentos e indiferença.

Estas poderiam ser razões por detrás do fenómeno. Outras haverá. Senão vejamos.

A escola, mesmo que às vezes criticada pelo seu facilitismo, muitas das vezes falha porque não consegue cativar os jovens. A metodologia e as matérias são por vezes desinteressantes para eles, e já agora, para a população estudantil em geral. Não existe o desejo de aprender.

A inadaptação destes jovens à escola pode ter vários fatores associados, como uma autoimagem negativa, insucesso escolar, falta de apoio por parte dos pais e má relação com os agentes educativos.

Assim, este desamor e a ausência de ambição futura, promovem comportamentos delinquentes na escola. Parece ser uma forma de mostrar a revolta e permite evidenciarem-se de outra maneira e marcar uma posição.

O iniciar de uma atividade profissional precocemente, por volta dos catorze a dezasseis anos, o insucesso e abandono escolar, aparecem normalmente também associados à carreia desviante.

Outra razão por detrás de comportamentos criminosos é a influência dos amigos que é apontada como base para o início destes atos ilegais.

Obter objetos caros como sapatilhas ou calças de ganga de marcas conhecidas, que de outra forma não conseguiriam ter porque muitos provêm de meios desfavorecidos, é com frequência um motivo válido para estes “miúdos” começarem a roubar.

A adrenalina explica em muitas situações o início de atividades delinquentes. Muitos jovens afirmam cometer delitos pela “pica”, pelo prazer ou pelo divertimento, pela curiosidade ou por experimentarem algo de diferente.

Por um lado, Fréchette e LeBlanc falam-nos de uma síndrome de personalidade delinquente em que traços psicológicos como a inclinação criminosa, antissociabilidade e egocentrismo têm uma influência determinante na forma como o sujeito interpreta as circunstâncias sociais.

Por outro lado, a autora F. Digneffe defende que o sujeito é totalmente responsável pela construção do seu projeto de vida.

A quem responsabilizar ou o quê? Uma causa? Várias? Hereditárias, biológicas, ambientais ou sociais? Como podemos ajudar estes jovens? O que precisa ser reestruturado no nosso sistema social?

 

Ana Teixeira

 

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6.8.14

 

Podemos encarar o problema da delinquência de duas maneiras: como forma de expressão ou o resultado da incapacidade de controlar impulsos mais instintivos. Dentro desta visão, a delinquência suscita-nos uma certa compreensibilidade, derivada do entendimento da natureza mais animal do ser humano, mas também de uma criatividade esboçante de querer ir além, da qual origina a transgressão.

O comportamento criminoso pode iniciar cedo na vida ou ser potenciado mais tarde, dentro de um contexto que expõe as fragilidades éticas do indivíduo. Seja de que modo for, há sempre uma interação entre a vulnerabilidade do outsider e a efervescência do meio envolvente.

A profilaxia de uma problemática como a delinquência deveria ser um esforço coletivo de reeducação da própria sociedade, sendo certa, contudo, as suas próprias limitações. Não podemos esquecer a grande correlação que existe entre a delinquência e as condições socioeconómicas precárias. A pobreza, fruto de políticas injustas e ultrapassadas, é talvez o maior crime a ocorrer em pleno século XXI. Qual percentagem de responsabilidade deve ser imputada a um jovem, cuja realidade sempre foi de carência, falta de afetividade, falta de incentivo a uma melhoria de vida, violência?

Podemos, individualmente, não ter cognição sobre a nossa contribuição na construção de um mundo melhor. Mas, a partir do momento em que começamos a eliminar os subtis comportamentos de esquiva do núcleo da nossa personalidade, começaremos a resgatar os outros, e a nós mesmos, da marginalidade afetiva, dando bons exemplos e tecendo a teia da reconstrução da dignidade societária.

Tanto mais desenvolvido um país, quanto melhor for a sua educação. Não é só preciso toda uma aldeia para criar uma criança. É também precisa toda uma sociedade para encontrar respostas aos problemas sociais emergentes.

 

Marta Silva

 

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4.8.14

 

O meu nome é Maha al-Sharif, vivo na Arábia Saudita e ontem fui presa por cometer um crime. Fui apanhada a conduzir, e no meu país só os homens podem conduzir. Safei-me com uma noite de encarceramento porque o meu marido é, simultaneamente, uma pessoa importante e um marido compreensivo e, como foi a primeira vez, moveu influências e mandou irem-me buscar. Quando cheguei a casa, bateu-me com um cinto, para me ajudar a ganhar juízo. Já sei que vai demorar muito tempo para ter coragem de me voltar a arriscar a sair de casa e sobretudo, tornar a ter oportunidade de colocar as mãos num volante. É que, se me tornam a apanhar, não me safo tão facilmente.

 

Chamo-me Feriha Kulin e sempre quis ser médica; adoro o cheiro a farmácia, os instrumentos cirúrgicos, o bulício dos Hospitais e, sobretudo, pessoas. Pronto, e puzles para resolver, do género, fratura exposta ou falha cardíaca. Chamem-me estranha… mas só quero ir salvar vidas. Fui inscrever-me na faculdade. Bateram-me, empurraram-me, correram-me à vergastada. Diz que só os homens devem estudar e que o lugar das mulheres é em casa, a tomar conta do marido e dos filhos. Diz que afinal sou louca. E agora estou internada num hospício. O meu pai trouxe-me. Diz que sou a vergonha da família.

 

Eu sou a Laleh. Há tempos passeava no parque da cidade, estava um lindo dia de Primavera. Ia de mão dada com a minha namorada. Ela disse alguma coisa simples e bonita como ela. Eu adoro-a. Dei-lhe um beijo. Demos um beijo rápido, envergonhado, a medo, a correr, como as duas criminosas que somos. Toda a gente sabe que aqui em Teerão a punição para a homosexualidade é a morte. Ela foi enforcada ainda antes de mim, eu fui obrigada a ver. Agora estou aqui nesta cela imunda, à espera que levem o meu corpo para o mesmo destino. Que seja em breve, por favor, porque a minha alma já foi.

 

O meu nome era Jehan Bakhsh e tinha quinze anos. Fui comprar especiarias à mercearia, já era um pouco tarde mas a minha mãe insistiu porque o meu pai, o meu marido e os meus irmãos estavam a chegar a casa para jantar e vinham com fome do trabalho, e era importante terem uma refeição decente. Aqui no Paquistão as mulheres têm que ter cuidado quando saem à rua sozinhas, mas eu tinha sempre cuidado. Já estava a regressar quando fui encurralada numa esquina por três jovens. Ainda imberbe, um deles. Mas todos muito decididos, muito cheios de si e de coisas para provar. Seguiram-se horas que não posso contar, porque nem consigo voltar a esse lugar. Consegui escapar com vida e voltei para casa. A minha família estava preocupada. Quando perceberam o que se passara, os homens da família levaram-me para as traseiras da casa. Chamaram-me nomes que também não ouso repetir, explicaram-me que a culpa era minha, que as mulheres são todas umas meretrizes e que eu era uma adúltera e uma desgraça insuportável para o bom nome da família. A seguir, mataram-me ao pontapé.

 

Eu nasci no Sudão e o meu pai chamou-me Meriam. Dizia sempre que eu era a sua luz. Depois os anos passaram e eu apaixonei-me. Para mim este amor vale tudo. Fiquei grávida. O meu amado é cristão, eu não. Fui presa, estava grávida. Porque ele tem uma fé diferente chamaram-me adúltera e levei cem chicotadas por ter casado com um cristão. Consegui sair do país com a minha família. Mas sei que não posso voltar nunca mais.

 

Dora Cabral

 

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2.8.14

 

Os artigos da série Endometriose, publicados em 5, 12, 19 e 26 de julho 2014, estão agora também disponíveis em inglês. Pode aceder à versão em inglês através do link existente no rodapé de cada um dos artigos.

 

The articles of the Endometriosis series, published in the 5th, 12th, 19th and the 26th July 2014, are now also available in English. You can access the English version through the link on the bottom of each article.

 

Mil Razões… + MulherEndo

 

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1.8.14

 

A Raquel trabalha comigo. É gaiteira, de Cedofeita. Fala em tom agudo, enerva-se em decibéis gritantes. Dos altos. É genuína. E é bonita por isso, só por isso. Só pela verdade. Porque a beleza aos olhos dos outros a Raquel não tem. Não apreciam os sapatos ou o semblante carregado. “Tem ar de zangada.” Dizem-me. É dissidente, bate o pé, levanta-se e chora, faz perder o juízo em quem trabalha com ela. Como certa vez me afirmaram a respeito dela “Sabes como é… Gente frontal: ou se ama ou se odeia…”.

O Pedro não a ama. Não consegue, seja de que maneira for. Não gosta do traço grosseiro dela, da indumentária dela, do trato dela, até das palavras que ela utiliza. Não gosta da transparência porque ele não a tem. Então opta por fazer de Raquel, ela própria, a transparência: não a vê, não lhe fala, desdenha e ignora-a. Como se de um verme se tratasse, nem a um nível do tafetá translúcido o Pedro assume a Raquel: é um fantasma para ele. Um infeliz (e raivoso) encontro numa determinada época profissional. Que é esta e que é implacável. Como o Pedro é com ela.

O assustador da minha história - e o que perturba como espetadora da raça humana – é que o Pedro é encantador. É galanteador. É sedutor. Eloquente. Bem apresentado: fato sem vincos, cabelo aparado. Um político na sua poltrona de couro. Sorriso forçado mas sempre presente. Piada tirada a saca-rolhas, graxa nos sapatos dos superiores. Alguém que me tira do sério verdadeiramente. Que resume uma colega de trabalho a lixo. A nada. Que me diz sem pudor “Ela devia ser uma delinquente no meio onde cresceu.”. Mas que a ela nem palavra. Nem “Bom Dia”, nem “Boa Tarde”. O Pedro é enguia.

Que vai morrer a meio do caminho nesta procura incessante de aniquilar a Raquel, de a resumir a um ser inferior à sua existência, de não aceitar o brilho genuíno e intenso dela. Marginaliza-a com toques de subtileza, de cavalheiro, de senhor.

Uma serpente que morrerá com o seu próprio veneno, um veneno tão comum: a tentativa de resumir os outros a seres ordinários, desestabilizadores e de caráter duvidoso. Mas o Ser Humano é isso mesmo, imbecil. Não se retratando e revendo os atos acredita na punição coletiva a alguém quando, na verdade, o que está a acontecer é que a punição está a cair nos seus próprios ombros. Porque quando nós falamos de alguém, quem nos ouve ficará a saber mais de nós do que propriamente de esse alguém.

E a máxima de que a verdade é como o azeite é tão séria quanto a Raquel. Que luta pelo seu lugar ao sol. E que vai ser dado com a luta que ela própria assumiu desde que entrou: sem filtros e sem luz artificial.

Hoje foi um dia de explosão. De discussão. De ódio exposto no maior exponencial possível onde trabalhamos. Um dia de distúrbios. Um dia que me fez rezar. E esperar, de uma vez por todos, a Mão da Justiça. Que virá brevemente.

Sabemos que o Mundo está com os princípios invertidos mas eu sei que a centelha da vida – seja ela delinquente ou não – é a pedra basilar de todas as coisas.

O resto (os restantes)… É só verniz do verdadeiro delinquente… dissimulado.

 

Sofia Cruz

 

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