17.1.14

 

Ela estava farta, cansada.

Farta do dia-a-dia, das rotinas, das obrigações, das contas para pagar. Do emprego, dos amigos, dos vizinhos, das conversas de circunstância, de não poder fugir, desaparecer, desistir por apenas alguns momentos. Farta de cinismos, convenções, da luta constante. Deixar mesmo de existir por algum tempo. Criar tempo para não ser nada e poder ser tudo. Ela estava farta e cansada e precisava de um intervalo.

 

E o intervalo veio. Veio num sábado a 140 km a hora, numa autoestrada, pelas mãos de um estranho a conduzir à louca, sem aviso, e destruiu o carro em que seguia e não deu grandes explicações, nem se sabe como aconteceu. Veio quando ela estava feliz e descontraída, porque na verdade ela não tinha explicado quando é que lhe dava jeito o intervalo nem de que maneira é que havia de ser. Nem que não era preciso atingir as pessoas que amava ao mesmo tempo que a atingia a ela.

O intervalo veio e levou consigo uma semana inteira de memória, antes e depois do acidente. Foi uma semana de não existência, à custa dos outros, e de questões do tipo, ela vai viver ou morrer, ficar paralisada, recuperar? Foi uma semana de coma induzido e sedações, da família a sofrer e a correr e os amigos em negação. Foi uma semana que ficou muito cara a todos, em todos os sentidos. Não era bem nisso que ela tinha pensado quando tinha pensado já não sabe muito bem em quê.

 

E agora resta esperar, ter calma e paciência e ir recuperando o corpo e a alma. A família também está a melhorar e ela sente-se menos culpada mas ainda muito preocupada. Porque o mundo lá fora não parou e o limbo a que teve direito tem um preço alto a pagar…, não são as costas e a operação à coluna, não são as costelas partidas nem as tonturas constantes que a magoam mais, ou que de todo perturbam. É a sensação de pesadelo constante, de ter arrastado todos a sua volta atrás de si, de não haver tempo a perder com recuperações. É saber e sentir que precisam de si, que tem que ficar boa rapidamente, que não há tempo nem espaço para contemplações.

Ela já não pensa em intervalos…, pensa em ganhar ritmo e recompensar aqueles que sofreram e sofrem com ela. Aqueles que estão à sua espera pacientemente. Pensa em remendar tudo, não com remendos mas com uma base nova, ainda mais completa e linda. Pensa em juntar à sua cabeça que já está recuperada, um corpo igualmente funcional, pensa em ter a sua vida de volta e tomar controlo de tudo o que pode controlar e deixar fluir o que não depende de si. E pensa em ser feliz, não como era, porque já era, mas ainda muito mais porque agora dá outro valor ao que tem e percebe como o seu mundo, não sendo perfeito, é fantástico e invejável.

Ela está a voltar, passo ante passo, pela calada, mais forte que nunca, mais decidida que nunca e mais feliz que nunca.

E pronto, venha muito o que fazer, o que dizer, o que aprender, o que partilhar, em suma, o que viver. Durante muito, muito tempo.

Os intervalos são uma ideia estúpida. Nunca mais.

 

Dora Cabral

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 07:00  Comentar

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