8.11.13

 

Falar de sexualidade remete-me para uma viagem ao passado, recheada de episódios que me fazem chegar ao dia de hoje feliz por lhes ter sobrevivido. Entristece-me o quão cedo começou essa jornada na minha vida, o quão cedo o medo passou a ser a minha sombra – ou eu a sua, não sei bem. Não me lembro de ter dito sim uma única vez, de me terem dado a escolher entre aquilo ou brincar com as minhas bonecas mas, lamentavelmente, lembro-me de tudo o que não quero. Fui participante à força e tomada da mesma forma. Poupo os mais sensíveis dos pormenores feios, tristes, dilacerantes. Seja lá o que for que vos passe pela cabecinha, foi isso tudo, no mesmo pacote promocional. Digo apenas que ser criança e viver coisas de adultos é confuso, humilhante, rasga tudo por dentro, sobretudo o prazer genuíno de se ser criança e poder sorver o mundo sem medo de abraçar. Dói de tanto que dói.

Quem é pai, mãe, avô, tio ou convive regularmente com crianças pequenas sabe que há uma fase em que a simples visualização de um beijo entre duas pessoas adultas apaixonadas as faz, com um esgar de absoluta repulsa, dizer – e cito - “que nojo”. Para uma criança esse grau de contacto físico parece ofensivo e completamente desnecessário. Uma inocente manifestação de carinho causa repulsa mas a violência exercida sobre o corpo e a psique, que faz chorar a alma, é mil vezes pior. Descobrir em tenra idade que afinal os adultos são mesmo nojentos, que nos fazem descobrir funções da nossa anatomia que nunca imaginamos ter, que nos tocam de uma forma que faz doer e assusta, é viver entre bemóis e sustenidos de uma peça perversa, sem saber tocar um único instrumento. E sem duplos para as cenas perigosas. Aprendi cedo que os homens batem, massacram, torturam, mordem, gritam, choram. E que muita coisa pode durar anos a fio debaixo do olhar dos nossos protetores mas completamente fora do seu radar. Aprendi que o amor dói. Permiti que o silêncio que calou o grito da minha alma, albergasse durante décadas a minha sentida culpa sobre todos esses acontecimentos. O meu filtro masculino ficou finalmente conspurcado na sua capacidade de depurar. As mais doces palavras, o mais gentil dos sorrisos, o abraço mais caloroso, o maior “amor” do mundo, podiam ser todos parte de um falso cartão-de-visita de quem se anunciava apenas para, de seguida, entrar de rompante e varrer tudo à sua passagem.

No entanto, apesar de ter conhecido alguns espécimes masculinos que não recomendaria a ninguém, sempre senti uma certa urticária nas conversas rematadas com “os homens são todos iguais”. Recuso-me a acreditar na teoria de que os homens são todos desonestos, incapazes de viver em plenitude, com lealdade e em paz. Não posso dizer que sei o que é ser um homem e não posso opinar sobre a forma como se veem uns aos outros; mas sei o que é ser mulher. E, deste lado da barricada, afirmo sem qualquer hesitação que há mulheres e mulheres. Logo, há homens e homens. Há pessoas, formas de estar, de viver, de sentir o outro e a si próprio. E nenhuma dessas condições é apanágio de género, raça ou orientação sexual. Apesar das provas irrefutáveis da ciência que nos definem enquanto homens e mulheres, há valores como a lealdade que não estão circunscritos ao ADN masculino ou feminino.

Perguntaram-me uma vez como raio podia “defender” os homens quando a vida me havia mostrado que nenhum deles era “confiável”. Lenta e demoradamente, desfiz o claro equívoco. Em primeiro lugar, a amostra recolhida da minha história de vida não era suficiente para que eu considerasse todos os homens pouco merecedores da minha confiança. Em segundo lugar, a mesma vida que me tinha permitido viver tudo aquilo, também me havia brindado com a presença de bons homens, de almas que transcendiam a mediocridade do mundano e me tocavam, sem beliscar. Foi tudo isso que me impediu de amargar e desistir. Um dia conheci um homem que me mostrou, por A mais B, que alguém me podia amar, reciprocamente, com honestidade e paixão, durante anos a fio. Que me despiu sem violentar e me vestiu a alma, com um profundo carinho, quando os meus fantasmas insidiosamente a desnudavam. Um homem com quem eu não tinha de ter medo e viver em estado de constante alerta. Alguém para quem a fidelidade não era um dever mas sim uma escolha, a melhor de todas, quando se tem o melhor de tudo. Embora não estejamos juntos, estar-lhe-ei para sempre grata por me ter feito acreditar no amor até aos dias de hoje. Por isso, se homens me feriram, homens me salvaram da irreversibilidade autodecretada que dita o fim do amor e da esperança. Acredito que há homens e homens. Há mulheres e mulheres. Há pessoas magníficas no mundo, todos os dias feridas por gente para quem o centro do mundo é o seu próprio umbigo.

Não posso jamais afirmar que os homens são todos iguais porque devo a um homem o resgate da minha alma e a capacidade de continuar a sonhar. Devo a mais uns quantos homens a partilha genuína da amizade não adulterada e o restabelecer da confiança que purifica a pele e os afetos.

Escrevo hoje para esses homens, para que nunca deixem de ser quem são, para que tenham consciência do seu valor, mesmo que a vida também os magoe, aqui e ali. Obrigada por todos os dias me mostrarem que só vale a pena amar aquilo que não tem preço.

 

Alexandra Vaz


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