29.7.10

 

O esforço para acompanhar as passadas largas e apressadas da mãe, na rua íngreme e de passeios tortuosos, é grande. Ainda assim é por aquela rua que, todos os dias, quer ir para a escola. Desde que abriu aquela pastelaria que alimenta a expectativa de um dia vir a ter uma daquelas caixinhas que graciosamente enfeitam a montra. Não sabe o que elas guardam mas tem muita curiosidade em saber.

À medida que se aproximam, abranda o passo e com um olhar guloso viaja pela montra. Os bolos, frescos e expostos de forma a chamar a atenção dos que passam, são tentadores. Mas é nas caixinhas coloridas que os seus olhitos se fixam. Arrumadas em grupos, num jogo de formas coloridas, ficam muito atractivas. Quadradas ou rectangulares, forradas com papel celofane rosa com fitinhas verdes, em papel cor de laranja com laçarotes amarelos, ou nos vários tons de castanho e pérola, todas elas ficam muito bonitas.

Não sabe de qual gosta mais e se pudesse escolher uma não conseguiria decidir-se. Outras ainda, do mesmo tamanho mas em forma de coração, sendo diferentes são igualmente bonitas e muito misteriosas. O que esconderiam aquelas caixinhas com laçarotes tão bonitos? Chocolates aveludados com recheio de natas? Caramelos cremosos? Gomas coloridas? O que quer que fosse, só podia ser muito bom, aquelas caixinhas não a enganavam!

Aproxima-se mais e cola a carita ao vidro, tenta apanhar um aroma ou algo que a ajude a descobrir que segredos encerram.

Não sabe explicar como isso acontece mas quanto mais as admira, mais adocicado é o gosto na sua boca, e só desaparece com a pressão de uma mão a lembrar-lhe que estão a caminho da escola.

Um dia vai ter uma caixinha daquelas!

 

O fim de ano escolar chegou e com ele a confirmação dos bons resultados. Merecia ser recompensada. Para surpresa de todos pediu uma caixinha das que estão na montra da pastelaria no cimo da rua, nenhuma em particular, qualquer uma a tornaria muito feliz. Com estranheza, a mãe entregou-lhe a caixinha.

Pegou-lhe com muito cuidado. Primeiro tomou-lhe o peso, pareceu-lhe muito levezinha, que guloseima poderá ter esta leveza? Abanou-a; não sentiu nada lá dentro. Tirou o papel com muito cuidado, não quis amachucá-lo. Finalmente a caixinha ia deixar de ter segredos. Tirou a tampa. Não quis acreditar no que os seus olhos viam - melhor dizendo não viam. Dentro, a caixinha não tinha nada. Vazia! Esqueceu-se dela em cima da mesa.

O tempo manteve-a como objecto decorativo.

 

Cidália Carvalho

 

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26.7.10

 

Pedro nascera numa aldeia plana, de casas térreas e brancas cercadas por searas sem fim. Na planura da aldeia destacava-se um pinheiro solitário. Pedro, ainda menino, confidenciava ao irmão:

- Gostava tanto de subir àquela árvore! Ir até à ponta, mesmo até à pontinha, e abraçá-lo.

- És tolo. Ainda és muito pequeno para tão grande subida – dizia-lhe o irmão sem prestar grande atenção. E acrescentava:

- Pois cá para mim, essa árvore devia morrer. Já se viu um pinheiro no meio da planície alentejana? Se não fosse tão grande e eu tão pequeno, deitava-a abaixo.

 

Os anos foram passando e, à medida que os irmãos iam crescendo, o pinheiro crescia também, numa relação que tornava cada vez mais apetecível e difícil a concretização dos desejos, quer de um, quer do outro. Até que numa tarde de Inverno, uma violenta tempestade atravessou em crescendo a planície, abatendo-se sobre a aldeia. Pedro, abrigado em casa, acompanhava os rugidos do vento, furioso com as casas e os muros que se opunham à sua passagem. A certa altura ouviu-se um estrondo e de seguida o vento parou. Fez-se o silêncio profundo que acompanha o fim das tempestades e, passados minutos, Pedro percebeu que o irmão se aproximava da sua porta. Reconhecia-o pelo som da bengala que o acompanhava há mais de trinta anos.

- Pedro, vais finalmente poder realizar o teu sonho. A tempestade derrubou o pinheiro. Já podes abraçar-lhe a copa.

Pedro fitou o irmão com olhos tristes. Viu-o criança e relembrou as suas palavras de sempre.

- Tu nunca compreendeste o meu sonho porque ele era grande demais. O meu verdadeiro sonho era perceber o que é que um ser isolado e diferente sentia no meio de tanto igual. Nunca o consegui totalmente, mas de certo modo fui compensando o meu desejo por cumprir, ao ver que o pinheiro ia resistindo, vertical e altivo, no centro da nossa aldeia. O teu sonho, que implicava a destruição do meu, realizou-se.         

 

José Quelhas Lima 

 

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22.7.10

 

Passamos a vida a planear, desde que nascemos até morrer. Planeamos, ou somos planeados, pelo menos à nascença, que a concepção do nosso futuro ser pode ser, como não ser planeada.

Planeamos, planeamos, mas raramente o resultado é como planeado. São planos para vida, planos de estudos, planos de carreiras, planos de poupança, planos de férias, planos de casamento. A vida é em si um plano. Sonhamos, enquanto planeamos, mas são sonhos objectivos. Todos os pormenores estão incluídos, todo o processo, até o resultado, é planeado. Depois descemos ao nível do real e há sempre um pormenor que faltou, um imprevisto, e a realidade é um pouco diferente do que planeamos. Mas é mesmo para isso que servem os planos, essa necessidade de dar estrutura à nossa experiência, ao nosso ser, essa sensação de controlo e segurança. De estrutura. Mas, como todas as estruturas, nada é inalterável. Porque tudo se transforma, mesmo que sem comprometer a base, mas acabam por se moldar arestas, alterando a forma, do inicial. Há sempre desvios.

A vida é um plano, mas controlar imprevistos não faz parte do plano. Eles simplesmente acontecem. E aí surge o plano B. Porque normalizar é também uma necessidade de estrutura, ou, por assim dizer, necessidade de combater a desestruturação que nos arrasta para o fundo. E como sobreviver, ou como reconstruir, quando chegamos ao zero e dali temos de partir novamente, numa constante reconstrução de nós?

 

Pois é, cresci a sentir que tudo muda, muito mais rápido do que se pensa. Desde pequena tive a sensação que o tempo passava rápido e com ele passavam todas as fases. Só me restava acompanhar o ritmo, porque o tempo não anda para trás, nem espera por nós. Ouvi, também desde sempre, que antes de mim, na geração anterior, tudo era mais duradoiro, as relações, as carreiras, havia uma pessoa para toda a vida e um emprego para toda a vida. Mas percebi logo, quando passei a entender melhor o mundo, que hoje a constância é a mudança. E daí, surge a capacidade de nos adaptarmos, constantemente. E às vezes, quando nos falta o chão, temos de ser rápidos a saltar para não cair no abismo. Este jogo de cintura, não nos torna mais descartáveis, torna-nos mais capazes de não dar o plano como garantido, persistindo no entanto a fome de um plano seguro, uma estrutura que aguente, independentemente das tempestades.

 

Hoje, não há plano B. Há plano C, D, E, F… Deixei de planear em grande porque me apercebi que há muitas variáveis no jogo que não dependem só de mim. Há acidentes, crises, doenças, como há lotarias, sorte (não na mesma proporção!), mas continua a haver a necessidade de planear, pelo menos a curto prazo. Haverá, sempre capacidade de recomeçar, pelo menos enquanto houver a visão dum plano melhor.

 

Cecília Pinto

 

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19.7.10

 

Criar expectativas é tão natural como respirar. Desde sairmos de casa à hora habitual, contando demorar os 20 minutos conhecidos até ao lugar de trabalho, como sempre acontece se saímos àquela hora, com bom tempo e sem acidentes de percurso, até esperarmos gozar a nossa reforma após uma vida de trabalho. Que as expectativas nos criem, também o é. Nascemos no contexto de uma determinada cultura, movemo-nos em grupos sociais com costumes e regras mais ou menos explícitas que assimilamos mesmo sem nos apercebermos; a dinâmica instala-se entre o anuir e esperar corresponder, e a rebelião, na procura de uma forma de estar que identifiquemos como “sou eu e tenho um lugar”; assumimos um compromisso, múltiplos compromissos, ou a ausência deles, que modelam a nossa identidade - não nos é dado escolher.

 

Ao longo da vida aprendemos a lidar com as múltiplas e flutuantes camadas de expectativas: as que são nossas e as que recaem sobre nós, as que fazemos recair sobre os outros, aquelas de que não tínhamos consciência e as que alimentámos deliberadamente (que não raro são metas ou objectivos, encadeados), as que são inevitáveis e as que não são, as que são realistas e as que não são, as que são inócuas e as que são armadilhas, as que são pequeninas (espero que a compota de cereja fique boa!) e aquelas que definem a forma como conduzimos as relações mais íntimas, a vida de quem está ao nosso cargo, o quão bem estamos connosco, como lidamos com os outros, o que nos move, as decisões que tomamos, o que produzimos, o que fazemos de nós.

Da mesma forma que nos impulsionam, as expectativas podem ser expressão de pré-conceitos e manietar-nos ou agarrar-nos ao passado, porque construídas sobre experiências que já foram, que tiveram os seus condicionantes e desenlaces. Podem impedir a comunicação de mensagens muito simples. Esta semana explicava por email a uma amiga como remodelar um documento com a formatação automática no Word; é simples, mas por qualquer razão ela não estava a conseguir. Decidimos falar ao telefone e ela diz-me “Mas é só isso?” Esperava outra coisa, daí achar que estava a falhar.

 

Uma vida em que faltem expectativas positivas (de realização, de bem-estar), na série que alimentamos continuamente, deve ser como um carro que trava a todo o momento e que no final do percurso se gastou em 50 quilómetros. Por outro lado, acontece ouvirmos alguém balbuciar “esperava muito mais desta relação”, para justificar o estado deplorável em que está. Há quem se instrua em não criar expectativas - será possível? Parece-me que é inevitável criá-las, até como um sentimento de fundo, talvez como ser-se optimista ou pessimista, como ter ou não ter esperança, ou fé.

 

Ana Álvares

 

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12.7.10

 

Como profissional de saúde mental vejo-me muitas vezes confrontada com o dilema ético de dar a conhecer, ou não, o diagnóstico ao próprio doente.

O objectivo deste artigo, não é o de convencer o doente com esquizofrenia a tratar-se, mas o de ensinar como tornar-se num esquizofrénico. Isto porque verifico muitas vezes um desencontro entre as duas realidades, a do mundo clínico e a do mundo do doente; assim, quero fazer uma aproximação humorística da situação.

 

Alerto desde já que ser esquizofrénico não é para qualquer um, é uma tarefa árdua e difícil. Não é esquizofrénico quem quer, depende de um desenrolar abrupto de acontecimentos. Essa constelação de acontecimentos pode começar com o nascimento nos meses frios, ter problemas no parto, suportar viroses precoces; é o que os investigadores até hoje procuram.

O mais importante é ter ideias delirantes, alucinações, ter um discurso sem organização, possuir um comportamento claramente desorganizado ou catatónico. Quem andar à procura de saber se é esquizofrénico, olhe para si próprio e verifique se tem dificuldade em contactar com os outros por nunca saber em que onda eles estão, se é difícil manter a sua concentração, se nunca percebe bem o que os outros querem dizer.

Com todo este trabalho até pode tornar-se num pequeno génio cheio de originalidade. De facto, é possível que desenvolva habilidades adicionais, como notar pormenores que ninguém notara antes, ou saber usar indistintamente as duas mãos quando a maioria das pessoas usa a direita (ou a esquerda no caso dos canhotos), por exemplo, para escrever.

 

Uma coisa importante é, para já, ter uma vida rotineira de modo a não se confrontar com situações imprevisíveis e tumultuosas onde teria de pôr à prova as suas emoções. Isso ficará apenas para pouco antes do início da doença, uma coisa de cada vez! Sobretudo, nada de namoros e muito menos contactos físicos com o outro sexo. Sabe como essas situações podem ser emocionantes, mas deve esforçar-se por nunca aprender a lidar com as emoções. Pode apenas permitir-se a uma ou outra paixão platónica, quanto mais impossível, melhor. Bom bom, é que essa paixão só exista na sua cabeça e depois comece a falar de si para si. O exercício que lhe lanço é mesmo esse: fale de si para si e permita responder-se a si mesmo.

 

Outro exercício que lhe proponho é que leia muito sobre tudo e depois confunda tudo, criando um curto-circuito no seu cérebro, queimando alguns fusíveis. Assim, vai ter sempre confirmadas as suas ideias e as suas previsões. Com esta postura, haverá algum afastamento por parte dos outros, mas não se preocupe porque está no bem caminho. Retraia-se se lhe chamarem autista; não lhes dê ouvidos.

As palavras e as coisas transfiguram-se e mudam de significado para lhe confirmarem essas verdades. As pessoas já não falam do mesmo modo, mas por sinais codificados que só você compreende. Tudo gira à sua volta e sente que tem controlo sobre o mundo.

 

Sónia Moura Sequeira

 

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8.7.10

 

Os estados emocionais são condição essencial da experiência humana. Traduzem sensações subjectivas, positivas e negativas, que variam em intensidade e duração, sendo de carácter transitório e sensível às experiências do indivíduo. São resultado da actividade cerebral e influenciam áreas específicas do funcionamento neurocognitivo como a atenção e a motivação, determinando o que é relevante para os seres humanos. Nesta medida, são consideradas uma representação da saúde psicológica do indivíduo e possuem um amplo papel no ambiente clínico.

Não existe uma taxionomia ou teoria para as emoções que seja geral ou aceite de forma universal e é grande a panóplia das emoções vivenciadas por todos nós. De entre as diferentes emoções, onde se pode incluir o prazer, a alegria, a euforia, o êxtase, a tristeza, o desanimo, a depressão, o medo, a ansiedade, a raiva, a hostilidade e a calma, a depressão e a euforia apresentam características opostas. Isto porque o sintoma cardinal da depressão é o humor disfórico, termo que implica tristeza, geralmente incluindo perda de interesse ou prazer na maioria das actividades da vida. Já a euforia é um estado de espírito caracterizado por uma satisfação e alegria fora do normal, aceleração extrema e inquietude, estimulando o impulso para compras e a hiper-sexualidade, entre outras reacções. Então, euforia e disforia são dois estados opostos, tal como alegria e tristeza e felicidade e infelicidade.

 

Do ponto de vista da utilidade, os estados emocionais são auto-reguladores e, pela informação que transmitem, podem ser poderosos aliados em termos de conduta. Mas esta aliança nem sempre acontece, já que o ser humano tende para a rigidificação ao nível do pensamento e é com grande facilidade que se deixa guiar por aquilo que sente sem pensar muito sobre o que está a acontecer.

A meu ver, tal como nos relacionamos com os outros, relacionamo-nos com nós próprios e com os nossos estados emocionais (não só a euforia e a disforia, como com todos os outros). Neste processo, a relação estabelecida pode ser adaptada, com os estados emocionais a serem usados como forma de orientação e regulação pessoal, ou desadaptada, quando as pessoas são apenas veículos para a sua expressão desorganizada. Daí que seja importante que cada um de nós se pergunte regularmente: Que tipo de relação tenho com as minhas emoções? Esta relação é vantajosa para mim?

 

Ana Gomes

 

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