29.3.10


 


Era uma tarde perfeita que convidava à calma e à contemplação. Confortavelmente sentada, deixou que o calor entrasse no seu corpo, que o amolecesse, e percorreu com o olhar toda a beleza que se oferecia à sua frente. A varanda permitia-lhe ver uma parte considerável do vale e, lá ao fundo, os montes recortados no céu, tão azul! 


 


O telefone tocou. Voltou a tocar uma e outra vez. “Pode ser que desistam”, pensou. Tocou mais uma vez e desistiram. “Quem seria? Se for assunto importante volta a ligar certamente”. Abandonou-se de novo à observação da paisagem. Enquadrados por choupos, os pastos verdes, de um verde-claro e inocente, estendiam-se por todo o vale até serem interrompidos por austeros castanheiros. Depois começavam os montes. Primeiro os pinheiros, uma mancha verde-escura, compacta, que subia até se diluir na vegetação rasteira que terminava no céu, tão azul! Aí fixou o olhar, nesse azul intenso, uniforme, imenso.


 


O telefone tocou de novo. E desta vez atendeu. “Estou sim”. Do outro lado, o silêncio. “Estou sim, quem fala?” Nada. Pensou em desligar, mas apercebeu-se de uma respiração ofegante que lhe chegava entrecortada, mas nítida. “Está lá? Isto é alguma brincadeira?” Apurou o ouvido e reparou que a respiração se tornara mais forte ainda. “Quer falar, ou não quer falar? Se não quer falar, eu desligo. Tenho mais que fazer”. Um choro contido, baixo, meio respiração, meio choro, fez-se ouvir. “Diga-me quem fala. Bolas, se ligou, é porque precisa de falar comigo. Ou só quer que eu ouça o seu choro?”. O choro continuou e tornou-se ainda mais contido e mais baixo. E continuou. E continuou até que se ouviu, lá no fundo, muito lá no fundo, “Obrigado”. E desligou.


 


Sentiu-se atordoada, confusa e sobretudo inquieta. “Quem seria? Por que terá ligado? Fui brusca. Mas eu também não adivinhava o que se passava? Podia ter-lhe perguntado… Nem sequer me despedi. Mas não tive tempo. Apesar de tudo, a chamada deve ter-lhe feito bem - agradeceu-me. Será que volta a ligar? Se voltar a ligar…”. O olhar regressou à paisagem. Os verdes, os castanhos e o azul do céu permaneciam iguais, mas lá no alto, bem lá no alto do céu, uma nuvem escura, compacta, era agora o centro da sua atenção.            


 


José Quelhas Lima


 

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25.3.10

 


 


Hoje em dia assumimos como natural o facto de vivermos em sociedade e parece-nos contra-natura o facto de alguém querer viver isolado, como um eremita, apressando-nos a apelidar tal pessoa de doente mental ou fortemente desequilibrado. No entanto, provavelmente nunca parámos muito para reflectir no porquê de vivermos em sociedade? O que é que nos impeliu, desde cedo, a procurar a companhia dos outros? Terá sido simplesmente para termos alguém com quem jogarmos às cartas, ou haverá outras razões mais básicas de acordo com a pirâmide de Maslow?



 


Desde cedo compreendemos que a vida em sociedade traz benefícios, quer pela questão da defesa contra outros grupos e predadores, quer pela facilidade na procura de comida, quer posteriormente pelos benefícios que advieram de uma agricultura mais intensiva, própria do sedentarismo a que os fomos votando, quer pelo apoio dos elementos mais fortes da tribo/família aos elementos mais frágeis.
Com a complexificação das sociedades, fomos desenvolvendo novas respostas para lidar com os novos desafios. Se durante muitos séculos cabia à família a partilha dos conhecimentos e a obrigação de cuidar das crianças, dos enfermos e dos mais idosos (quem é que não tem uma tia mais idosa que ficou solteira para poder cuidar dos irmãos mais novos, ou dos pais?), cada vez mais fomos passando essas obrigações para o Estado (através do desenvolvimento, principalmente nos países de cariz social-democrata europeus, do Estado Providência).


Ora o Estado Providência foi desenvolvendo mecanismos de protecção aos seus elementos mais frágeis e desprotegidos, nomeadamente através da criação da Segurança Social e dos seus subsistemas de protecção social.


Enquanto sociedade fomos percebendo que todos os cidadãos teriam direito à satisfação das mais básicas necessidades (algumas das quais estão previstas na Constituição da República Portuguesa).


No entanto os tempos de hoje são bem diferentes daqueles que se viviam no pós 25 de Abril de 1974, e cada vez mais observamos como a nossa sociedade vai virando as costas aos seus elementos mais desprotegidos, seja pela celeridade com que colocamos os nossos idosos em lares e aí os esquecemos, seja pela pressão cada vez maior de cortar nas prestações sociais aos grupos economicamente mais desfavorecidos, apelidando de preguiçosos e de oportunistas quem recebe estas prestações do Estado.


Muitas serão as razões por detrás destas tomadas de posição (oportunismo politico, crise financeira e concomitante egocentrismo social, desconhecimento da realidade e tomada de posições baseadas em preconceitos e ideias erradas), no entanto este caminho, se por um lado granjeia votos, leva-nos numa direcção francamente perigosa de desagregação social, enviando a mensagem que quem não pode contribuir em determinado momento está a mais, levando-nos no caminho da lei da selva em que cada um olha por si e o nosso “vizinho” de hoje será o nosso “adversário” de amanhã na luta por aquilo que acreditamos ser nosso por direito divino.


 


Acredito que é nos momentos de maior provação que temos a oportunidade de mostrar a nossa grandeza moral, sentido de justiça e altruísmo. Aquilo que fizermos hoje irá ter profundo impacto nas vidas de quem nos seguir e compete-nos a nós reflectir sobre qual o caminho a percorrer daqui para a frente, sem desculpas nem subterfúgios. 


 



Alexandre Teixeira


 

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22.3.10


 


Primeiro ponto: este é um tema já gasto. Assim mesmo.


Segundo ponto: nunca é demais falarmos nele.

E digo isto porque trabalho precisamente com pessoas que “sofrem” destes dois “males” de forma conjunta e é dessas pessoas que quero falar… Trabalho com pessoas com atraso mental (vulgo deficiência). Acho que ninguém discordará que são diferentes e muito menos que sejam uma minoria. São diferentes por um universo de motivos e vou-vos poupar aos mais evidentes. Esqueçam os QI e tretas afins. Para o caso não interessam… São diferentes porque somos diferentes e não estou a segmentar duas facções opostas – com e sem atraso mental. São diferentes porque somos todos. Claro que também não vou apregoar aqui uma corrente humanista que coloque a ênfase da beleza Humana na multiplicidade e paradoxal unicidade da espécie. Uns são mais diferentes e outros são mais iguais. É evidente que pessoas com trissomia 21 são mais iguais entre elas do que um grupo de portugueses, católicos, caucasianos ou portistas (acho que consegui abranger quase todas as classes para classificar minorias: nacionalidade / origem étnica, religião, adeptos do FCP). Contudo, aqui tem de se parar um pouco para reflectir.

 

Na frase anterior, comecei por falar da diferença e propositadamente acabei na minoria. Sendo fácil cair no erro de julgar que os dois conceitos são similares ou sempre coincidentes (o que não são), nesta população específica são mesmo. Como vimos, são diferentes entre si como somos todos, mesmo que algumas características de alguns sindromas os aproximem (físicas, mentais, comportamentais, etc.), e são também uma minoria porque constituem (mais ou menos) 3,5% da população portuguesa. Ora, podíamos agora aqui incluir a questão da discriminação, porque estão reunidas as condições ideais para tal. Mas não vamos fazê-lo. Não porque tal não suceda (é evidente que sim) mas porque como português / psicólogo acho que devo dar o exemplo e tentar demonstrar que é possível agir no sentido da intervenção social pela positiva ao invés do “método telejornal”.

 

As pessoas com atraso mental são tão felizes como qualquer outra pessoa (e vou escrever a partir daqui de forma generalista, admitindo sem reservas de cada situação é digna da sua diferenciação e especificidade). Regra geral não sofrem por serem diferentes e se sofrem é porque os fazem sentir assim. Não questionam se são minoria. Se se sentem assim é porque verificam que não têm o mesmo apoio que outros (em contexto institucional é meu dever também referir o apoio deficitário – deficiente, porque não? – que o Governo presta a estas pessoas. Seja ele de forma directa ou indirecta). E aqui reside, talvez, a face mais triste desta situação: o sentimento de diferença e minoria tem origem em causas externas, logo fora do locus de controlo do indivíduo. Ele é vítima do mesmo sentimento que as outras pessoas diferentes e/ou pertencentes a uma minoria. Mas, ao contrário destes não têm um lobby, uma associação, um partido, ou mesmo a sua própria voz que advogue, com um grito social digno de registo, os seus direitos à não exclusão. Que tal sermos diferentes e, deixando a minoria, começarmos a gritar com eles?

 

Rui Duarte

 
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18.3.10

 

“Os jovens conhecem cada vez mais o mundo em que estão, mas não sabem quase nada sobre o mundo que são.” (Augusto Cury)

 

A Educação é um dos pilares fundamentais da Sociedade. Esta deveria ser tratada e cuidada com a máxima atenção, ponderação e consciência. É com base na educação oferecida hoje que o amanhã poderá ser proveitoso ou, simplesmente, desperdiçado.

Desde o nascimento que o ser humano começa a ser educado, primeiro pelos pais e familiares, depois pela escola e outros círculos sociais onde a criança se encontra inserida. É sobre esta educação escolar que discorrerei os meus pensamentos.

 

De uma educação mais informal onde as únicas aprendizagens que tínhamos seriam as ensinadas e contadas pelos nossos familiares, e das nossas experiências, para uma educação formal, escolar e em sociedade, onde o papel do professor é fundamental para a aquisição das informações, como do saber ser e pensar.

A educação escolar em constantes mudanças… Dizem que agora se encontra em crise… Resta saber se desta crise nascerá uma nova mudança para melhor. Tenho esperança.

 

No meu tempo, o professor era o substituto dos pais na nossa educação. O respeito por esta classe era-nos incutido desde pequeninos. E se as reguadas ou outros castigos similares existiam, era porque nós os merecíamos. Não passaria pela cabeças dos pais discutirem ou desautorizarem aqueles que nos ensinavam, pois para além de nos passarem toda a informação necessária para o nosso crescimento, também nos ajudavam a saber ser e estar em turma, em sociedade.

 

O que se observa hoje em dia é o crescente desrespeito pela classe dos professores, assim como à culpabilização destes por falhas observadas no desenvolvimento das crianças. Mas não será culpa dos pais, que não lhes dão a autoridade necessária para educar e que, ainda por cima, pouco tempo têm para o fazerem com a profundidade necessária? Não sei… Acho que culpabilizar os pais ou os professores por tudo aquilo que está errado, não levará a lado algum. O importante seria unir forças para que realmente as nossas crianças tivessem um acesso à verdadeira educação do saber ser, saber pensar… antes do simples saber.

 

Ana Lua

 

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15.3.10

 


 


Olhando este tema, a primeira coisa que surge no pensamento é algo muito próximo do fora do normal, no sentido em que se desvie do que tenha sido previamente determinado. Ou seja, algum tipo de comportamento que, de uma ou outra forma se desvia do normal, do esperado, do “tal” previamente determinado.

Se perguntarmos a um grupo de pessoas o que entende por comportamento desviante, responder-nos-ão que é algo que foge ao que está padronizado, outros dirão que é algo patológico (relativo a uma doença), outros, algo fora do normal, etc..

Mas afinal quem o determinou? E, por que motivo aceitamos um comportamento e não o outro? O que torna um comportamento normal (correcto ou aceitável) e, o outro desviante?

As pesquisas científicas remetem para problemas do comportamento onde encontramos, também, uma vasta lista de chamados comportamentos anti-sociais, que serão atitudes contrárias e prejudiciais à sociedade.

Será, então, esta sociedade a responsável pelas etiquetas que colocamos nestes e noutros comportamentos? Quererá isto dizer que a sociedade é responsável pelo estabelecimento de regras de conduta para a muito aclamada vida em sociedade (relação entre pessoas; convivência)?

Na verdade, não só o ser humano, como a maioria das espécies animais tem necessidade de viver em grupo com os seus semelhantes. Para isso, é necessário obedecer a um conjunto de regras, que serão os padrões comportamentais próprios que caracterizam cada espécie.

Este conjunto de características permitirá, acima de tudo definir o grupo de pertença de cada sujeito. Podemos dizer que através desse comportamento social é atribuída uma identidade social. Por sua vez, os indivíduos que manifestam um comportamento diferente do esperado são categorizados pelos seus pares como detentores de “um comportamento desviante” ou comportamento anti-social, acabando por não se incluir ou não ter nenhum grupo de pertença.

 

Andreia Esteves-Pinto


 

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11.3.10

 


 


O ser humano, como animal que é, facilmente estabelece laços afectivos e emocionais com animais de outras espécies. A razão da aproximação e do desenvolvimento de afectos poderá estar na beleza, na inteligência, ou na necessidade de companhia.


Bolinhas redondinhas e peludas são, normalmente, os que levamos para casa e que se tornam os nossos amimais de estimação, que necessitam de ser alimentados e educados, recebendo o nosso carinho e dedicação.

 

Os animais têm, para muitas pessoas, a capacidade de diminuir a solidão, tornando-se seus interlocutores, ou mesmo confidentes, recebendo, no final do dia, a descrição do que aborreceu ou do que alegrou o seu dono.

Nos momentos em que nos sentimos completamente incompreendidos pelos que fazem parte da nossa raça, parece que aquele a quem chamamos Gião, ou Mia, nos entende perfeitamente e que, com uma lambidela, tenta curar a mais feia das feridas emocionais. É verdade que com tão pequeno gesto podem fazer o seu dono sentir-se mais feliz.

Nunca deveremos esquecer que os animais são isso mesmo: animais, e por isso podemos amá-los até ao limite dessa condição, sendo felizes com a sua presença e ficando tristes com a sua partida. Por isso, não devemos ter vergonha de chorar quando perdemos um animal de que gostamos, que esteve incondicionalmente ao nosso lado e nos dedicou a sua lealdade.

No extremo, os animais poderão ser a única companhia de um ser humano, a razão de uma existência, a presença que assegura a sensação de ser amado, de ser querido. Não é questionável o quanto poderemos aprender com os animais. Podem de facto ser muito importantes e desempenhar papéis fundamentais no desenvolvimento do ser humano.

 

Muitos são os que guardam recordações de momentos inesquecíveis que passaram com animais. Eu sei que guardo…

 

Susana Cabral

 
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8.3.10

 


 


Na varanda do topo do prédio, olha as gaivotas livres e desafiantes, e sente na alma um desgosto profundo de não ser assim livre como elas.

- Dona Maria, bom dia!

- Bom dia, vizinha! Ainda em casa?

- Sim, hoje vou mais tarde para o trabalho! E a vizinha, vai ficar aí a ver as gaivotas? Vá dar uma volta senhora! Hoje até o sol veio espreitar…

- Talvez vá lá abaixo comprar qualquer coisita…

- Bom, tenho de ir… mas olhe, não se fie nas gaivotas! Elas só fazem troça de si… compre um bichano… até logo!

- Até logo… - suspirou a Dona Maria com desalento.

Dona Maria é uma típica senhora do bairro, divorciada, com uma filha, vive sozinha numas águas furtadas da capital. Está reformada, não por alguma incapacitação, mas porque a idade chegou e agora ela é apenas mais um número nas estatísticas. Passa os dias na pouca lida doméstica, mas para além disso, nada faz, para além de ver televisão. De vez em quando, toma café com uma das ex-colegas do serviço, mas isso já é raro. A família mora longe do furor da cidade e por isso só nos dias festivos é que há reuniões familiares. Dona Maria sente-se só, olhando da varanda um mar de gente. Mas, mais do que isso, sente-se inútil e sem vida. Sempre fora uma mulher cheia de vida, mesmo que a vida nem sempre tenha sido carinhosa com ela, porém o fim da vida activa tornara-a amorfa. Já não tinha um propósito, porque tudo aquilo a que a sua vida se resumia tinha acabado, ou seja, o trabalho. O resto já era hábito.

Nessa tarde, Dona Maria decidiu descer à civilização. Foi à padaria, ao talho e tomou um cafezinho na confeitaria da esquina. Estava ela sentada no seu recanto quando se depara com um folheto que dizia: “Precisamos de si!”. Aquela mensagem atingiu-lhe directamente o coração! Intrigada, desdobra o folheto e começa a ler. Tratava-se de um serviço de voluntariado, no qual pediam voluntários para trabalhar com populações desfavorecidas. Bastava ter um coração aberto, vontade de ajudar os outros e ter algum tempo disponível: “Dê um novo sentido à sua vida, ajudando os outros!”.

- Bem, tempo tenho eu! – pensou a Dona Maria.

- Vieram cá uns jovens entregar esses folhetos! – disse a empregada.

- Ah, sim?! Uns jovens… pois, eu já sou velha para isto – desabafou a Dona Maria.

- Velha?! Desculpe, minha senhora, mas não tem cara de velha! Por acaso tem 80 anos? Hoje em dia velho é dos 80 para cima!!! – reclamou a jovem empregada.

A Dona Maria soltou uma gargalhada.

- Muito obrigada minha filha, já me sinto jovem outra vez!

- Olhe, porque não experimenta? Os jovens disseram que precisavam de pessoas, e como a senhora tem tempo livre… - desafiou a empregada.

Dona Maria voltou ao seu refúgio, ainda imersa no folheto que trazia no bolso… tempo tinha ela… e coração com certeza… e precisavam dela. Havia algum tempo que sentia que não era precisa para nada. Olhou o telefone com receio. Ligo, não ligo? Ligou.

Passada uma semana, Dona Maria dirigiu-se ao centro de voluntariado. Ao entrar na porta sentiu um arrepio, como na primeira vez que foi a uma entrevista de emprego. Porque se sentia assim? Foi recebida calorosamente pela coordenadora e falaram sobre as actividades. Sentiu-se invadida por um sentimento de alegria inexplicável, quase como uma adrenalina, um pulsar nas veias. Saiu orgulhosa por ter entrado.

Hoje, a Dona Maria já não olha as gaivotas do topo da sua casa. Dedica o tempo que pode ao serviço dos outros e sente-se livre. Tem uma nova família e encontrou um lar nos colegas e nas pessoas que ajuda todos os dias. Sente-se útil e integrada de novo no mundo que outrora lhe recusava um lugar. Sente que a vida começou de novo, que ainda tem muito para dar. Tem também um novo companheiro de casa, o Tobias, que passa muito do tempo nocturno a vaguear nas ruas, mas volta sempre para escutar as inúmeras histórias que a dona tem para contar.

 

Cecília Pinto


 

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4.3.10

 

 

Tudo indica que tenha nascido da necessidade comum de enfrentar as outras espécies mais fortes, uma fórmula de sucesso na estratégia bélica primitiva. Hoje é uma lei ao abrigo do gregarismo, uma condição para a sobrevivência da espécie humana, a razão da nossa existência.
 
A ciência experimental provou que a prolongada privação de estimulação sensorial, leia-se ausência de contacto com o meio e com os outros, é difícil de suportar (dificuldade essa que pode ir do mero desconforto até à terrível alucinação).
A ciência social afirma que o Homem só se define enquanto inserido numa comunidade. Veja-se, por contraste exagerado, o exemplo da criança que foi encontrada errando sozinha, no Verão de 1798, na floresta de Saint-Sernin, no sul de França: o menino selvagem ou o selvagem de Aveyron ou, depois da densa injecção de humanização, o Victor de Aveyron que aos 12 anos não tinha ainda adquirido as competências essenciais da linguagem articulada, nem da locomoção aprumada. Vejam-se os outros 51 casos credíveis documentados na lista de Lucien Malson: a criança lobo de Hesse (1344), o enigma de Kaspar Hauser de Nuremberg (1828), o pequeno Ives Cheneau de Saint-Brévin (1963), etc..
Vejam-se ainda as desventuras que, com mais ou menos fantasia, parecem estar sempre coladas aos náufragos que acostam numa qualquer ilha isolada no meio do oceano, em geral do Pacífico.
Veja-se, por fim, o conceito de suplício associado à chamada “solitária” nas prisões.
 
Viver em sociedade tem por antónimo a solidão. E com que facilidade se enfia a solidão no saco das dores! O solitário sofre, está abandonado, rejeitado pela sociedade, desprotegido, exposto aos mais diversos perigos, tem medo, carrega todas as pesadas cruzes do penoso calvário da solidão.
 
A grande maioria das pessoas faz-se rodear de gente, quer habitando zonas habitadas, quer constituindo família, quer socializando com estranhos ou com gatos. Tudo indica, de facto, que esta é a organização natural do animal humano.
Mas será mesmo assim? Será a vivência social assim tão boa, necessária, útil e natural? Não será antes uma questão aprendida e transmitida de geração em geração contra a qual não tem havido grande debate? É que, contrariamente a este estado de coisas, há quem sobreviva, ou viva bem, no isolamento e até na reclusão. É o caso dos eremitas, anacoretas e ascetas, que optam por uma vida de recolhimento, meditação, sabedoria e paz; das irmãs seminaristas e dos monges de alguns credos mais ortodoxos, que entregam as suas vidas à causa religiosa; dos cansados da vida agitada que se voltam para outra mais rural e contemplativa; dos que deambulam sempre sozinhos nas grandes cidades.
 
A vida em sociedade, por outro lado, também não é fácil. Com tanta falta de civismo, tanto egoísmo, tanta lei da selva e do salve-se quem puder na mais moderna das metrópoles, faz-nos pensar sobre se é realmente este o estilo de vida que melhor serve a nossa espécie. Tanta violência doméstica, tanto divórcio litigioso, tanto crime passional só pode traduzir tensão e intolerância entre aqueles que são, ou outrora foram, significativos um para o outro. Agora imaginemos entre aqueles para os quais há absoluta indiferença: parece haver relação social sustentada por finos cordéis de boa educação e conduta. E o que é isto de educação? Nada mais do que a melhor das estratégias possíveis para aceitarmos e sermos aceites pelos outros desde o dia em que deixámos o nomadismo e nos tornámos sedentários, isto é, proprietários e capitalistas. No entanto a educação não é inata: é antes imposta, um decreto pela convivência.
 
Será que a vida dos isolados fica realmente em perigo? A companhia dos outros parece não ser, pelo menos em teoria, essencial à sobrevivência. É um pouco como a actividade sexual, que apesar de ser um impulso natural do qual não se escapa sem alguma resistência, não mata na abstinência prolongada.
 
Julgo que vivemos em sociedade porque nos habituámos a isso e esquecemo-nos que há tanta atracção do Homem pela sociedade, como do Victor de Aveyron pela floresta. Mas não temos muita escolha, pois não?
 
Smith
 
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1.3.10

 


 


Venho contar a história do Sr. Joaquim.

Não o conheci, não sei quem era, mas conto de ouvir contar.

O Sr. Joaquim preferia o lazer ao trabalho – mas não era preguiçoso.

Homem muito alegre, morava junto ao mar e começava o seu dia correndo, ou apenas caminhando, com o mar a beijar-lhe os pés.

Adorava cantar e tinha fama de bom bailarino.

Nunca ninguém viu o Sr. Joaquim fumar - dizia que cheirava mal e que manchava os dentes.

Bebia o seu copo de vinho, ou a sua cerveja, de quando em vez. Bebia sempre muita água e adorava leite.

O Sr. Joaquim era magro, comia pouco e preferia sempre o peixe, os legumes e as frutas. Raramente comia carne – dizia que se sentia pesado. Adorava cenouras e laranjas.

O Sr. Joaquim era homem de fé, fervoroso devoto de São Paulo, a quem dizia dever muito.

Com bom aspecto, culto e bem-falante, coleccionou muitas paixões – todas magras, acima dos 25 anos, alegres e muito carinhosas. Casou aos quarenta anos, teve cinco filhos e netos sem conta.

Gostava de passear e de viajar, conhecer outras terras, outras gentes. Via muitos filmes, lia muito e dizem que gostava de escrever poesia – porém nunca ninguém conseguiu ler nenhuma.

Bem disposto e activo, seguiu sempre o seu estilo saudável de vida - como todos os outros, acabou por morrer. Mas tinha cento e cinco anos.

 

FCC


 

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