27.12.09

 


 



Acordei cedo; a ansiedade era tanta que quase pulei da cama. O pai já saiu, o meu irmãozinho ainda dorme, a mãe está na sala de volta dos presentes. Embrulha-os meticulosamente com mãos de fada, tudo fica perfeito. Pergunto-me como pode alguém fazer algo tão belo e chorar de tristeza, ao mesmo tempo. Tento animá-la, digo-lhe que é Natal e que este ano a vamos ter em casa. Noutros anos para trás, explicou-nos que tinha que trabalhar, que há pessoas doentes 365 dias por ano e que tem sempre de haver alguém que assegure as suas necessidades. Assim, todos se sacrificam e ficam longe dos seus entes queridos em muitos momentos especiais, até ela; já nos habituámos. Mas este ano não; este ano temo-la connosco.

 

Gostava que o pai sentisse o Natal. Gostava que, pelo menos nesta altura, as coisas em casa fossem pacíficas e felizes. Está sempre tão zangado… já não sei se é por nossa causa, se é a vida que o desilude, ou se ele simplesmente perdeu o rumo há mais tempo do que imagina. Sei apenas que vivemos no medo, no terror absoluto. Mesmo no Natal.

No entanto, uma parte de nós sente alegria também. Gostamos dos enfeites, das luzinhas a piscar, da árvore cheia de bolas coloridas mas, sobretudo, vibramos com o momento em que fazemos, juntos, o presépio com musgo verdadeiro, a cabana a preceito, o riacho e todas as personagens importantes! Gostamos da comida da nossa mãe, do cheiro do cabelo dela quando nos abraça, das músicas natalícias que cantarola connosco.

O meu irmão é pequenino, saltita pela casa atrás do cão que insiste em morder as patas dos carneiros do presépio. O dia pacífico com a mãe passa num ápice e logo se antecipa a chegada do pai a casa. O silêncio vai-se instalando dentro de nós enquanto a televisão passa um programa qualquer alusivo à época. Olho para a porta um cento de vezes; não há menino Jesus que nos valha se o pai entrar por ela adentro a cair.

A minha mãe prepara o jantar: tradicional, até aos dias de hoje, servido numa mesa bonita e aprimorada. Cada gesto dela contrasta claramente com o semblante carregado e a tensão nas palavras que balbucia. Quando a chave roda na fechadura, o mundo entra em suspensão. Gela-se-nos o sangue.

 

Não mexe, não respira, não pestaneja.

Ele caminha (leia-se: cambaleia) até à sala e grunhe qualquer coisa sobre o Natal e o bolo-rei que traz debaixo do braço. Afinal, trouxe o que lhe pediram e ninguém morreu, logo, para quê exageros? Para quê chatearem-no quando não quer ser chateado, questionado, beliscado sequer? E tem razão: ninguém quer chateá-lo, de bom grado seríamos invisíveis. Parece que desejamos todos a mesma coisa mas, por qualquer estranha razão, acabamos a dizê-lo em linguagens diferentes e a coisa descamba, em menos de um fósforo.

Neste dia, ironicamente, somos poupados da dor do corpo, massacrado dos dias anteriores, porque o pai ainda está em processo de “mea culpa”. Aos poucos, vemo-lo adormecer com a cara em cima da mesa e a tranquilidade regressa assim que o sentimos a dormir profundamente.

Aninhamo-nos no sofá, no melhor colo do mundo, e agradecemos por mais este dia em que nos temos uns aos outros. Neste Natal “só” se carrega a dor da alma e esta vai-se diluindo no poder balsâmico do abraço da minha mãe. Nela, com ela, aquele momento é perfeito.


 

É o melhor Natal que podia alguma vez pedir…

 

Alexandra Vaz

 
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Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 11:31  Comentar

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