28.10.09

 


 


Foi num fim de tarde de Agosto. Num dia daqueles em que o sol raia de tal forma intenso que reflecte no chão e faz doer os olhos mal se sai de casa, torna o ar tão pesado que é preciso respirar fundo para conseguir que ele entre pelos pulmões e areje os brônquios e os alvéolos.

Foi num desses dias que eu o vi pela primeira vez. Tinha acabado de sair de casa para me sentar no banco de jardim em frente, com um pão com marmelada numa mão e um copo de leite na outra, os olhos apenas ligeiramente abertos para me proteger do sol e ainda a ouvir as recomendações da minha mãe “Joana: não vás para longe!”.

 

Mal me sentei ouvi o chiar da cadeira… depois o arfar ofegante do que me pareceu ser uma pessoa num extremo sofrimento. Fiquei assustada, deixei cair o pão, levantei-me do banco de repente e corri para dentro do portão da entrada onde fiquei à espera… Continuava a ouvir o barulho que depois percebi ser o som da respiração de alguém, alguém em esforço. O som cada vez mais intenso, cada vez mais forte, aproximava-se… De repente ele passou. Eu, do lado de dentro do portão, encolhi-me, mas não fui capaz de fugir. Fiquei ali a olhar, aterrorizada… E ele passou… Devia ter aí uns 45 anos, tinha uma pele escura queimada pelo sol, o tronco e o pescoço largos, uns braços enormes que balanceava para trás e para a frente agarrando as rodas da cadeira. A cada movimento soltava um gemido, com os dentes cerrados e o suor a escorrer em bica pela testa. Encolhi-me mais por trás do portão e espreitei por baixo para ver melhor… Vestia uma t-shirt de alças, gasta, e uns calções azuis que cobriam o início das coxas. A certa altura estas desapareciam e o que sobrava dos calções abanava com o resto do seu corpo à medida que a cadeira de rodas progredia no passeio. Passou por mim sem parar. Desviou ligeiramente o olhar do caminho, os nossos olhos cruzaram-se e esboçou um sorriso. Rapidamente olhou novamente em frente e continuou com determinação o seu caminho.

 

Eu permaneci imóvel enquanto olhava o seu (“meio”) corpo enorme na cadeira a desaparecer ao longe, o som cada vez mais baixo da sua respiração ofegante, ficando para trás apenas o chiar das velhas rodas de ferro.

 

Joana Gonçalves
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20.10.09


 

Sentia-se confortável. Tão velha como ele, a cadeira de repouso envolvia-lhe as costas, sustentava-lhe os braços, moldava-se às pernas e amparava-lhe a nuca de tal forma, que o seu corpo parecia flutuar, imponderável.

 

Gostava dos fins de tarde de Outono e da luz mansa que se espraiava pela casa. Os objectos adquiriam tons quebrados e formas difusas, remetidos para a sua importância funcional. Lá fora, a figueira dos seus tempos de menino, espreitava pela janela e acenava, impelida pelo vento.  

 

Já passara um ano sobre o maldito AVC e persistiam as dificuldades de coordenação de movimentos. Em tudo dependente - até para dormir - aguardava que alguém o deitasse ou o trouxesse para a velha cadeira onde permanecia todo o dia. Ali passava longas horas, sozinho, assombrado por recordações, revisitando pessoas e sentimentos. Por vezes retinha as imagens mais agradáveis, alongava-se nos detalhes e dormitava sobre eles. Mas dias havia em que fragmentos dolorosos do passado se impunham e dominavam os pensamentos. Nessas alturas, levantava os olhos para a velha figueira e seguia-lhe os movimentos ondulantes até alcançar um estado hipnótico e libertador.

 

Apesar de tudo, sentia-se bem naquela tarde. Percorreu os tempos em que subia à figueira e as vezes sem conta que de lá caiu. A velha face enrugada e trémula esboçou um esgar, quase um sorriso. Recordou o amigo que muitos anos atrás lhe dissera já ter tido um A, um B e um C, receando continuar, de acidente vascular em novo acidente, até ao final do abecedário. E riu-se contidamente por dentro. Cheirou a hortelã acabada de cortar e as rosas vermelhas que bordejavam o canavial. Desceu ao rio de sempre e tocou nas águas luminosas e transparentes. E ficou muito tempo na margem, seguindo as folhas levadas pela corrente. De súbito, o rio parou e a imagem do seu rosto de menino surgiu reflectida na água.    

 

O tabuleiro de figos no parapeito de sol; as iscas de bacalhau do Solar das Andorinhas, o gato preto, enorme, no tapete da sala; ”- a nogueira secou”; o corredor imenso, cheio de fantasmas de luz e sons; os cheiros da sobreloja e a galinha ao fundo, imóvel no cesto; ”- já chegou o menino Jesus”; as sobrancelhas do professor Borges; as mãos macias e quentes da mãe. Era sempre assim: recordações aleatórias acotovelavam-se no final do dia e terminavam com a imagem da mãe, segurando-o no colo. ”Amanhã, pensou, vou visitar a escola e, se tiver tempo, vou comer umas iscas da “Ti Rosa”.

        

Sentiu a mão da filha a percorrer-lhe a cabeça. Começava o ritual diário que anunciava a hora de se deitar. Compensou com o olhar os gestos que o corpo recusava e deixou-se levar.    

           

José Quelhas Lima


 

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15.10.09


 

Depois do trabalho, antes de regressar a casa, passa no lar de idosos. Não gosta do nome nem do conceito mas isso não lhe atrasa o passo - nada lhe atrasa o passo. Corre para lá ansiosa!

À entrada do quarto, a mesma pergunta de sempre:

- Como será que vou encontrá-la?

Não tinha planeado separar-se dela. Não daquela forma. Tentou quanto pôde mantê-la em casa, mas a insubordinação da mãe venceu a paciência das empregadas que contratou para lhe fazerem companhia. Zangou-se com a determinação dela em não querer ninguém a “espiá-la” e, sobretudo, zangou-se por ela não aceitar a incapacidade que a doença, implacável, acentuava cada vez mais. Aprendeu, com a ajuda do médico, que a mãe não tem a mesma percepção do problema, melhor, a mãe não sente que haja problema.

Perguntar pelas pessoas que já morreram, ou esperá-las como se fossem chegar a qualquer momento; querer saber a que horas regressa da escola, ela que terminou o curso há tantos anos, são sinais de que pensa continuar a conduzir a vida com o zelo que sempre pôs nessa missão, em função dos seus. Portanto, para ela, tudo está normalizado.

Custou-lhe perceber estes lapsos de memória, não os valorizou até ao dia em que a mãe, deambulando pela rua, chamou a atenção de um polícia. Estava perdida e não sabia voltar para casa, felizmente tinha com ela os documentos de identificação.

Recorda com tristeza esse encontro. Sentada, esperava. Não sabia bem o quê, esperava porque lhe tinham dito para o fazer e nem mesmo quando a filha entrou na sala e se olharam, o rosto ganhou expressão. Os olhos baços, sem referências passadas onde pudessem fixar-se, perdiam-se para lá daquele lugar e daquelas pessoas.

Com cada vez mais frequência é assim que a encontra quando a visita no lar, perdida, escondida não sabe onde. Abraça-a e prolonga esse abraço na secreta esperança de que lhe traga à memória que ainda são e serão sempre mãe e filha, mesmo que incapaz de sentir isso.

 

Cidália Carvalho

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13.10.09

 


 

A velhice, sendo o período da vida no curso do qual algumas funções diminuem progressivamente, é um acontecimento incerto, porque não se sabe se a pessoa viverá até ficar velha.

 

Simone de Beauvoir fala da velhice como um conceito abstracto, uma categoria socialmente construída que serve para referir o período de vida em que as pessoas ficam velhas. Enquanto estereotipo facilmente reconhecível, enquadra uma categoria de indivíduos cujas características relativamente homogéneas, são normalmente identificadas com o isolamento, solidão, doença, pobreza e mesmo exclusão social. Contudo, ao atingir a fase final do ciclo de vida, o que a maioria de nós espera é envelhecer com segurança, dignidade e que continue a participar na vida em sociedade e exercendo os seus direitos.

Apesar disso, podemos verificar que estas pessoas dispõem hoje de maiores possibilidades de sobrevivência, têm mais saúde, mais meios económicos, culturais e sociais, maior difusão de infra-estruturas de apoio médico e maior diversidade de terapêuticas. Como consequência, gozam de mais anos para viver. São portadores, também, de um capital de informação incomparável que, se o valorizarmos, terá maior impacto nas gerações mais jovens.

Mas o que é então ser velho nas sociedades modernas? A velhice como categoria social pode dizer-se que ficou institucionalmente fechada nas fronteiras de um limiar de idade fixo, cujo acesso é reforçado pela detenção de uma pensão de reforma. Sendo esta – a reforma – também uma forma de exclusão social quando atribui o estatuto desvalorizado de “reformado”.

 

Dizem que ser velho é ser lento, sem memória para as coisas do dia-a-dia, refilão, triste, aborrecido, enfim… um chato! Mas… não! Ser velho, apesar de ser idoso e ter saber de viver, é chegar onde, provavelmente, muitos nunca chegam.

Ser velho é ser solidário com os mais novos, ter mais paciência para as crianças, é ser feliz por pertencer aos filhos, aos netos, aos outros, é ter a idade da inocência, do saber das histórias, aquelas que a vida ensinou, é ter a sabedoria de todos os almanaques do mundo.

Ser velho é ser maior, é ser amigo, é ter um brilhozinho nos olhos por ver os outros felizes e dizer que ama mesmo sem receber nada em troca.      

Ser velho é uma meta para todos nós, mas nem todos lá vamos chegar.

Que pena não ter a certeza de um dia ser velha!!

 

Ana Santos


 

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8.10.09

 


 



Num pequeno instante transforma-se a incapacidade em capacidade, só porque foi possível virar mais uma página no calendário e passar a ter 18 gloriosos anos.

Se ontem não era capaz de conduzir um carro, pois hoje, milagrosamente, os tais 18 anos transmitiram a aptidão necessária para o guiar sem ir com ele contra uma parede; nada, mas mesmo nada, tem a ver com a experiência adquirida e muito menos com a prática.

A menoridade incapacita as pessoas em variadíssimas áreas e só nos tornamos capazes e competentes quando tivermos a oportunidade de soprar 18 velas e completar “aquilo” que legalmente chamamos de maioridade e, por consequência, responsabilidade, maturidade e sentido cívico.

São engraçadas as limitações que temos enquanto nos 17 anos e 364 dias porque, a lei o diz, estabelecendo que o ser humano só adquire capacidades para tomar decisões por si próprio no dia em que completar 6570 dias da sua existência.

Não! Não podemos votar, pois somos ainda incapazes para atribuir um sentido crítico a todas as diversificadas ofertas dadas pelos vários partidos políticos! Mais uma vez a maturidade e o sentido cívico nada têm a ver com a situação?!

Não! Não somos capazes de pura e simplesmente comprar um bilhete de avião e ausentarmo-nos dos pais! Seria uma situação catastrófica porque a responsabilidade ainda por adquirir, não nos iria acompanhar nessa viagem.

Não! Não temos a capacidade de alugar um filme pornográfico, imagens tão explícitas não podem ser visionadas por aqueles que ainda não se encontram naquela faixa etária perfeitamente capaz de assistir a um filme XXX.

Ficam de fora também as capacidades de preencher um cheque, contrair um empréstimo, casar e, pura e simplesmente, tomar decisões, sem que a assinatura dos pais não esteja a validar a escolha.

 

Não foi assim há tantos anos que este “salto” para as capacidades estava delegado para os fantásticos 21 anos. Mas entretanto, com o progresso, as incapacidades também sofreram as suas alterações e agora está fixado que terminam aos 18 anos.

Sim! É verdade que teremos de colocar uma barreira para não correr o risco de ver uma criança de 9 anos à frente de um volante, mas não deixa de haver alguma hipocrisia - as incapacidades não desaparecem aos 18 anos. Sem preparação, educação, experiência, prática e bom senso poderemos continuar a sofrer de profundas incapacidades que nos impedem, ou deveriam impedir, de sermos capazes de coisas tão “simples” como por exemplo conduzir, viajar, votar e mesmo, alugar um filme para maiores de idade.


 

Susana Cabral

 
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Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 22:48  Ver comentários (14) Comentar

5.10.09


 


Estou aqui a olhar para ti. Olha para mim também, por favor, quero saber o que estás a dizer.

Estás tão habituado a ver-me ser auto-suficiente que te esqueces. Esqueces-te de que não te ouço. Sabes bem que esta diferença nunca me parou, nunca me derrubou, e acho que nem te lembras que existe. Mas está aqui.

Eu já nasci assim e por isso, isto para mim não é uma incapacidade, é uma diferença. Obrigou-me a ser criativa, a descobrir como superar obstáculos que para ti não existem. Eu tenho de contornar obstáculos físicos e isso ensinou-me a superar os obstáculos psicológicos.

E ensinou-me a rir, a perceber o poder do sentido de humor.

De vez em quando até dá jeito. Há coisas que é mesmo melhor não ouvirmos.

O Mundo não faz um grande esforço para se adaptar a mim, tive que ser eu a descobrir como adaptar-me a ele. Mas isso não acontece só aos surdos, pois não? Acontece aos que não podem ver, ou falar, ou andar. Acontece aos que mostram diferenças, físicas ou psicológicas. Acontece aos homossexuais, aos muito gordos, muito baixos... acontece a tanta gente que se nos juntássemos todos, os ditos “normais” é que ficavam em apuros.

Mas é mesmo assim, há os olhares de curiosidade, de pena, de desprezo. Isso também nunca me afectou muito, é um problema deles, não meu. Eu construi a minha vida, cresci mais forte e mais determinada. Eu vivo bem com este silêncio. Pelo menos na maior parte do tempo.

Mas por vezes... às vezes é difícil. Penso como seria ouvir um pássaro a cantar, as ondas a bater na praia, distinguir sotaques. Penso como seria ouvir a música enquanto danço. Ou emocionar-me até às lágrimas a ouvir uma área de Ópera.

E sobretudo, penso como seria ouvir-te quando dizes que me amas, ou a voz do nosso filho quando diz “mãe”.

 

Dora Cabral


 

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3.10.09


 


Abro os olhos... está escuro... nada consigo ver para além de uma escuridão imensa...

Todos os meus outros sentidos crescem... De repente, os sons são o elo mais forte com o que se passa à minha volta... Tento sentir os cheiros, deduzir os olhares, sentir as respirações, saborear os sorrisos...

O caminhar, outrora tão mecanicamente fácil, torna-se novamente numa aprendizagem difícil... Tento dar alguns passos: tenho medo! Medo de esbarrar em algum obstáculo, medo de tropeçar, medo de cair, medo de me colocar em risco sem ninguém para me proteger...

A vida perde qualquer sentido porque cresci com as cores e as formas, com os olhares e os sorrisos, com todo um rol de sinais que aprendemos a decifrar e a valorizar...

Sinto muita falta de ver um céu estrelado, um sol a nascer, o infinito do mar, a neve no topo das montanhas, um sorriso sincero, a transparência de uma lágrima... Não damos tanto valor a estas pequenas coisas até ao momento em que perdemos o privilégio de poder vê-las!

Pergunto-me mil vezes: Porquê a mim? Porque me aconteceu ter que viver na escuridão?

Sinto-me tão sozinha... apesar de todos os sons, tenho que aprender a confiar apenas nas palavras, esquecendo o que é uma expressão facial/corporal, esquecendo o que sempre tive como base para o relacionamento interpessoal. Olhando o lado positivo, tenho que reaprender outras formas de me relacionar, de me dar, de viver... Mas isto é tão incapacitante! Sinto-me completamente dependente dos outros! É tão difícil entregarmo-nos aos outros... é tão difícil sabermo-nos vulneráveis...

 

Ana Lua

 
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