2.4.09

 


 


Solidão, diz o dicionário, é o estado do que está só.

 

Sabemos que aquele que está só pode sentir-se feliz ou não… de todo. O que leva a pensar que solidão não é apenas o estado de estar só. A palavra que tem graves conotações - de desventura, de mágoa - representa também um sentimento.

 

Como sentimento, pode querer dizer abandono. Abandono, desistência, repúdio, desamparo… Que será consequência de incapacidade natural de comunicar – de ouvir e de falar com os outros. Ou pode ter outras origens: a desestruturação da família tradicional terá acabado com a afectividade social fácil senão espontânea. Poderá ser questão de temperamento?

 

As pessoas incapazes de dialogar, supostamente rejeitadas, tornam-se agressivas, transformam o mundo num imenso campo de batalha, onde lutam… distantes, incompreendidas e incapazes de compreender. 

 

O estar só, simplesmente, não quer significar solidão com todo o conhecido cortejo de características negativas, mas pode ser um desejo e uma necessidade, uma vontade e uma satisfação.

 

E haverá momentos em que as duas situações se associam: queremos estar sós e em silêncio porque precisamos absolutamente disso para o nosso trabalho, mas não queremos prolongar esse estado nem o sentimento (eu abandono os próximos, os outros abandonam-me, logo sentirei a solidão) para além do tempo em que necessitamos de nos concentrar e de trabalhar sem dispersão.

 

Por isso, digo, verdadeiramente ninguém aprecia estar só, quero dizer, não… 24 horas por dia, 7 dias por semana, a vida toda. Apenas o faremos com alegria e, mesmo assim, durante o tempo necessário, se estivermos obcecados por uma acção que nos preencha inteiramente.

 

O trabalho, qualquer trabalho, é esforço e pena, mesmo quando dá prazer a quem o realiza e deleita aqueles a quem se destina, como é o caso do trabalho do escritor.


Na sua linguagem radiosa, muito criativa e estimulante, Roland Barthes toca o ponto fundamental quando enuncia a dificuldade principal do escritor moderno – o que o faz sofrer, o que o leva ao isolamento, ou, se quiserem, à solidão. Que é também a da sua escrita.

 

Tento explicar, seguindo Barthes.

 

 “Como a arte moderna na sua totalidade, a escrita literária contém simultaneamente a alienação da História e o sonho da História: como necessidade atesta o dilaceramento das linguagens... como liberdade é a consciência desse dilaceramento e o próprio esforço que pretende ultrapassá-la”.

 

O escritor convencido da sua modernidade procura uma ruptura na língua; que é um sistema de valores e uma instituição social e, como tal, não pode ser modificada por nenhum indivíduo. E, de qualquer modo, resiste: foi construída por ninguém para que a comunidade se entendesse. Tudo o que podemos fazer é aprender a manobrá-la.

 

O que o escritor pretende, aquilo a que se obriga, e que é criar uma linguagem nova e livre, talvez nunca passe de projecto ou de sonho ou de experiência, já que o tumulto que provoca na língua vai tornar a escrita ilegível.

 

Apesar de tudo e de todos os seus desejos e prazeres, esforça-se por comunicar ainda, a um outro nível, empenha-se em dizer alguma coisa, mesmo que seja outra coisa, mesmo que não seja o que diz, mesmo que seja o que não diz.

 

Penso que a escrita neste sentido se assemelha à pintura não figurativa e como qualquer outra arte do nosso tempo, corresponde à visão de um mundo desordenado e intrigante e também a "modificações decisivas de mentalidades e de consciências".

 

No século XIX, os escritores concebiam belas histórias românticas, e davam às suas narrativas a forma tradicional do romance. Os poetas queriam estar sós e tristes porque isso era interessante para a sua obra afectiva e sensível - assim António Nobre, Fernando Pessoa, tantos outros. E havia os génios que tinham a primazia do estado solitário.

 

Presentemente, pensa-se que as histórias estão todas bem ou mal contadas e os poemas líricos todos ditos, o que importa é o trabalho com a linguagem.

 

É evidente que o pobre escritor e o poeta contemporâneos têm de utilizar os velhos significantes ligados aos antigos significados porque esses são os signos que constituem a língua que usam. E, do mesmo modo, devem abandonar a literatura que os antecedeu. Mas a sua obra vai tornar-se-á escrita , tal como pretendem, no fim de um trabalho que é provocante e maldoso - o de perverter a sagrada língua da Mãe e dos Avós.

 

Deve ele usar a língua pura, purificá-la mais, ou perverter a língua? Quer novidades que só surgem com … O escritor é uma pessoa de bem, por isso, se interroga de que modo pode perverter a língua sem a perverter. É nesse duro dilema que a sua consciência se despedaça.

 

Se, apesar de toda esta actividade considerada criminosa, quer continuar a ser escritor é porque acredita que lhe está prometido um mundo novo, onde a linguagem será asseada e viçosa e brilhante. E não resiste.

 

O trabalho a partir de materiais usados não é exclusivo do escritor, mas ele é o único que utiliza o que, além de pertencer à comunidade, é sua pertença de modo tão privado, como uma qualidade que é sua desde que se conhece, como sua cultura e sua pátria.

Uma das razões do desejo de estar só e de solidão é que esse trabalho torturante implica uma cabeça limpa e em silêncio. E não se trata apenas do silêncio exterior a si.

 

Por vezes, sinto que tenho de empurrar pensamentos persistentes, impeli-los com força como caixotes pesados, afastá-los do centro da minha mente para ter aí espaço, que sinto como físico, para aqueles com que me quero ocupar.

 

E a escrita, culpada do afastamento do autor (se a sua linguagem é diferente, ele fica desligado dos outros e é esta a solidão que dói), é ela própria solitária porque é indecifrável, quero dizer, não comunica facilmente, quase desiste de desamparo, (haverá um código que se descobre no momento em que há que inventar outro), mas tem sempre e ainda uma esperança de expressividade, tal como o autor. A escrita quer conservar um sentido vago, um reflexo, uma diminuta recordação do velho código, talvez uma metáfora.

 

E como as pessoas incapazes de dialogar, a escrita é agressiva na sua luta isolada para ser aceite e entendida.

 

 “Sentindo-se constantemente culpada da sua solidão, ela não deixa de ser por isso uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras, precipita-se para uma linguagem sonhada cuja frescura, por uma espécie de antecipação ideal, representa a perfeição de um mundo novo adâmico onde a linguagem já não seria alienada”.

 

Deveremos ser sensíveis e pesquisar, estudar, tentar conhecer.

 

Enfim há muitas solidões para o escritor: as dele - a voluntária e desejada (gostava de inventar uma palavra nova) que é um silêncio, exterior; o outro silêncio que afasta os ruídos interiores; a que não deseja e lhe vem das dificuldades de um trabalho criativo e subversivo (a sua escrita – original e difícil de compreender - afasta-o e isola-o dos outros). E a da escrita, a solidão da escrita, ela própria a afastar-se das outras escritas.

 

Devo concluir contudo que há apenas duas qualidades de solidão para qualquer pessoa: a que se deseja e a que se sofre.

 

Zilda Cardoso

(escritora, convidada do MiL RAZõES...)

 

Temas:
Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 12:21  Comentar

De monicabaldaque a 9 de Abril de 2010 às 17:00
Zilda,
li atentamente o seu texto muito pensado, sobre a solidão, que não é o "estar só".
Para mim, que aprendi a viver com a solidão, a viver bem, com a solidão, ela nem se deseja, nem se sofre. É um "estado", acima dos outros "estados", e como qualquer deles, é uma condenação.
E condenação não quer dizer que é má. Não. Simplesmente é como um caminho que se percorre, ao longo do qual nos cruzamos com gente que saudamos, com flores que cheiramos, com o frio que nos gela as mãos, com procissões, com enterros, com crianças que correm, com guerras que matam... e nós vamos sempre para lá, e todos vêm para cá... isso é a solidão...

Mónica

De Ângela a 4 de Abril de 2009 às 11:49
A solidão é preocupante nestas vertentes que aqui se referem porque ultrapassam a escolha, a opção, o comando dos desejos e dos sentimentos.
Gostaria muito de deixar aqui a informação de um blog: porsol.blogs.sapo.pt

De Zilda Cardoso a 3 de Abril de 2009 às 06:36
Do mesmo modo, agradeço a oportunidade que me deram de dizer o que penso sobre o tema. Reparei neste momento que a forma como falo sobre escritores de um tempo passado, eu digo do século XIX, dá a impressão de que estou a situar Fernando Pessoa nesse século. Sabem que não é assim...

De Cidália Carvalho a 2 de Abril de 2009 às 17:26
A Zilda Cardoso aceitou o repto, e, fez para o Mil Razões o texto sobre a solidão dos artistas aqui "postado" para que todos possamos apreciar.

Obrigada, Zilda!

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