Era mais um entardecer soalheiro que aquecia os rostos ausentes no banco do jardim naquela praça. As conversas banais para quebrar o silêncio incómodo, acompanhavam o chilrear dos pássaros. Celestino, com o olhar preso no horizonte e os pensamentos ancorados no passado, deixou-se despertar pela inquietude contagiante das crianças que fugiam, como se não houvesse amanhã, da campainha que ecoava da escola. Celestino pensava amiúde - “E se não houvesse amanhã, para mim?” Ao ver as crianças de sorrisos abertos, deixou-se mergulhar nas memórias… voltou a ser o pai forte e sorridente que abraçava e levantava os seus dois filhotes com a leveza que só o amor permite, voltou a sentir-se invadido pelo aconchego dos gestos ternurentos que só um filho sabe dar, voltou… ao presente, e resignadamente sorriu… estava na hora. Lutando contra a força da gravidade cada vez mais decidida, levantou-se num esforço longo e demorado, com o peso que só a certeza do abandono encerra. Faltavam-lhe braços em seu redor que o ajudassem a abandonar o banco frio. Desaparecera o calor dos afectos, o tempo de partilha de histórias e tontices. Desaparecera o amor, ou pelo menos as pessoas para que o ajudassem a recordar o que era o amor. Tanta coisa que desaparecera, menos uma: sobrava-lhe tempo, muito tempo. Porque o tempo parece petrificar-se na amargura de quem passa por ele só, completamente só…
Era tempo de ir para casa. A sua “casa”, que não era mais do que um roteiro penoso de memórias cravadas em cada mesa cambaleante, em cada tábua do soalho que range ao ritmo dos passos lentos, em cada espelho que reflecte para si a imagem serena do seu amor, da sua vida, do amor da sua vida. Era tempo de ir para “casa”. Outrora o seu refúgio e o seu lar, a casa do presente não era mais do que um rigoroso relógio suíço que assinalava com precisão as épocas festivas (pelo menos para alguns) do ano. O silêncio pesado quebrava-se com o toque do telefone que conduzia até si as palavras doces dos netos e as sempre, sempre apressadas vozes dos filhos, dos seus dois filhotes. Na verdade, essa era a única forma de Celestino se lembrar que o Natal continuava a existir, porque a sua família, pouco a pouco, foi deixando de lhe aquecer a alma, foi deixando de estar bem juntinho ao seu coração, foi deixando de o ser, família. Celestino não se sentia a família de ninguém. Era também a única forma de se recordar que mais um ano tinha passado sobre o seu nascimento, quando, na realidade, aquilo que, com vergonha mais desejava, era terminar com o sofrimento de sobreviver mais um dia à companhia tristemente inabalável da solidão.
Enquanto caminhava com os olhos vazios perdidos na calçada, Celestino interrogava-se “E se não houvesse amanhã, para mim, terias saudades minhas, solidão?”…
Liliana Jesus
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