
A respiração calma e profunda denuncia que o marido se rendeu ao sono. O facto, só por si, não é nem anormal, nem bom, nem outra coisa qualquer que não seja proporcionar-lhe, a ela, um momento de libertação. Como sempre, depois da luta corpo a corpo, em que ele se esforça por exibir técnicas e performances habilidosas para lhe mostrar como é bom naquilo em que se empenha, no caso, possui-la, acaba por se render ao esforço e adormece. A luta dela é diferente, deixa-se possuir mas com grande esforço para não deixar transparecer o quanto é violentada. A ela o esforço não lhe dá sono, tira-lho. É então nesse momento, em que ele dorme e ela desperta, que pode livremente entregar-se aos seus pensamentos e à sua dor sem ter que justificar o seu silêncio com perguntas aborrecidas: “em que pensas?” “porque estás tão calada?” “pareces zangada, o que tens?”. Tem-se controlado nas respostas, uma palavra só tem sido suficiente para encerrar um diálogo que nunca o foi: “nada”. Mas, e se um dia ceder à insistência do marido e lhe revelar que não o ama, que nunca o amou e que se enganou ao pensar que o casamento seria a razão maior para esquecer a paixão por outro homem!... Como reagirá ele a esta verdade? E se cair na tentação de ser sincera e lhe disser como ele é ridículo a contorcer-se de prazer enquanto ela espera que o ato sexual acabe depressa e ele adormeça ainda mais depressa!... Como acomodará ele esta revelação? E se um dia, num gesto de pura ingenuidade, abrir o coração e lhe contar como se sente miserável neste engodo que ela própria armou!... Como ficará ela?
Afasta-o. Finca a perna no colchão e impulsiona o corpo para se sentar na cama. Ele mexe-se, dá meia-volta na sua direção e deixa cair o braço em cima dela num abraço sem sentido. Olha-o pelo canto do olho, verifica com alívio que ele continua a dormir. Repugna-lhe aquele braço forte e peludo a impedir-lhe os movimentos. Quer ignorar esta repulsa, silenciá-la mas não consegue, todo o seu corpo se retrai. Quer sentir aquele prazer que de insaciável se torna desesperante, mas é impossível, todo o seu corpo se fecha na intimidade do ato sexual.
Não é justo! Tudo é desencontro e desamor. Ela, alimentando a ideia de que um dia, sim, um dia ainda será feliz nos braços daquele que sempre a ignorou, não se vê como vítima das suas próprias fantasias e recusa outra realidade que não a idealizada. Ali mesmo ao seu lado, o marido, com a certeza de ter tudo controlado, dorme com a tranquilidade que a ignorância lhe permite.
Cidália Carvalho