Dizia-me há dias um amigo:
- A coisa que mais me enternece é ver um filho beijar o pai.
- Sim, é bonito mas beijar o pai não é o que há de mais natural? Perguntei admirada.
- Claro que é natural, ainda assim, todo eu me derreto quando vejo um filho, carinhosamente, beijar o pai.
- Com tal sensibilidade, o teu pai deve ter muita sorte contigo?!
- Pois aí é que tu te enganas. Não me lembro de ter vontade de beijá-lo. Como não fui criado com ele até me parece natural esta falta de afetividade.
- Natural, natural não será! Mas não sendo tu criado com ele, viam-se com regularidade?
- Nem por isso, o homem estava emigrado e só quando vinha a Portugal, o que acontecia uma vez por ano, é que nos víamos.
- E nem nessas alturas te apetecia beijá-lo e matar saudades?
- Quais saudades? Eu não estava autorizado a ter saudades.
- Não estavas autorizado a ter saudades? Mas ter saudades precisa de autorização?
- Pois não. Agora que sou adulto vejo com clareza que não, mas na época eu era um miúdo a quem a minha mãe e toda a família faziam a cabeça contra o meu pai.
- Agora baralhaste-me. Então o teu pai estava longe e a tua família ainda to distanciava mais, pondo-te contra ele?
- É isso mesmo, percebes-te bem o que eu quis dizer: punham-me à distância dele.
- E porque o faziam?
- Isso não sei mas passavam o tempo a falar-me mal dele, que nos tinha abandonado, que não queria saber de nós, que não mandava dinheiro para o sustento, e havia até quem dissesse que ele já tinha outra família lá no país para onde tinha emigrado.
- Mas isso era verdade?
- Não sei, nunca lho perguntei. Acho até que nunca ninguém lho perguntou. Quando vinha de férias todos se comportavam com naturalidade, só eu é que não. Não entendia este comportamento dos adultos e revoltava-me vê-los agir como se não tivessem esclarecimentos a pedir. Afastava-me dele, não conseguia esquecer que ele nos tinha abandonado e não lho perdoava.
- E ele percebia o quanto estavas afastado dele?
- Penso que sim porque procurava aproximar-se de mim, mas fazia-o de uma forma tosca que me violentava.
- Queres contar como era?
- Olha, sentava-me no colo e depois de me pôr a cara a arder, o que acontecia porque ele esfregava a barba rija na minha pele ainda tão fina, irritando-me profundamente, perguntava-me se eu gostava mais dele ou do meu avô.
- Ah! Estou a perceber violentava-te sexualmente.
- Não, não estás a perceber. Nunca me senti violentado sexualmente, mas não achas uma violência perguntar a uma criança de quem é que ela gosta mais? Achas que eu tinha coragem para o enfrentar e dizer-lhe que não gostava dele porque ele não se importava comigo e de quem eu gostava era do meu avô? O problema é que a falta de coragem para ser sincera com ele, criava uma situação de injustiça para com o meu avô, de quem eu gostava realmente. Esta simples pergunta era tão violenta como ouvir, durante todo o ano, os desabafos da família contra ele.
- Falam disso agora que és adulto e terás outros argumentos para te fazeres entender?
- Não, ele já morreu. O nosso relacionamento, ou melhor, a falta dele, nunca foi esclarecido.
- Isso é que é violento amigo.
Cidália Carvalho