29.3.13

 

Nessa manhã António chegou cedo à empresa. Sempre chegou cedo e sempre saiu tarde, mas nesse dia chegou ainda mais cedo. Teria uma reunião importante pelo meio da manhã, com um cliente, para fechar negócio após já mais de um ano de propostas e reformulações, de avanços e de recuos. Chegou ainda mais cedo nessa manhã para fazer uma última revisão da solução proposta, dos preços e das condições, antes da reunião decisiva. Queria estar muito bem preparado, seguro, para um fecho que sabia seria renhido, difícil. Sentia o stress e isso estimulava-o, dava-lhe prazer. Gostava de ir à luta e de vencer, adorava sentir-se um vencedor e que o reconhecessem como tal. Sentia que nessa manhã voltaria a experimentar esse sentimento e a antecipação inundava-o de satisfação.

Mas, subitamente, o coração de António sobressaltou-se, quebrou a rotina de mais de 44 anos e, como uma criança que aprende a andar de bicicleta, baralhou os movimentos e alterou o ritmo. E com esse sobressalto todo o corpo de António caiu, bem no meio do escritório. Quando o Joaquim, seu colega e admirador durante os últimos 10 anos, se abeirou assustado, estava António inerte.

 

Na ambulância, a caminho do hospital, António viu-se do lado de fora do seu corpo. Não ouvia o rolar da ambulância, não ouvia a sirene, não ouvia o que aqueles dois homens de fato branco e de coletes refletores diziam enquanto se multiplicavam em tarefas sobre o seu corpo deitado na maca. Não sentia dor, nem calor nem frio. Deveria sentir-se assutado, mas de algum modo, naquela estranheza, sentia-se confortável, leve, solto, tranquilo. Ouviu então uma voz e apenas essa voz, no meio de todo aquele movimento, de toda aquela pressa. A voz parecia-lhe vir de trás de si e então voltou-se. De pé, uma mulher muito bela mas que António não conseguiria descrever por mais que tentasse, chamava-o pelo nome, com um sorriso suave e doce. Os olhos de António inundaram-se de carinho e de curiosidade, acumulando e revelando todas as suas dúvidas e questões.

- Colapsaste… - disse ela. António permaneceu em silêncio. Ela continuou:

- O vencedor tombou.

António demorou a processar a informação. Acabou por perguntar:

- Estou morto?

- Sentes-te morto? – retorquiu ela. António não sabia o que responder e por isso ficou em silêncio e baixou os olhos, continuando a sentir tudo o que se passava à sua volta. Ela continuou:

- Como defines a tua vida? Como te defines a ti mesmo?

- Uma vida de luta. Sou um lutador bem-sucedido, um vencedor. – respondeu António sem hesitar.

- Como achas que serás recordado ao saíres dessa vida?

- Como um vencedor! – continuou rápido.

- A tua mulher, o teu filho e a tua filha recordar-te-ão assim, como um vencedor, quando os deixares? – detalhou ela.

- Sim, certamente que sim. – afirmou António, um pouco hesitante.

- Porque hesitas? – António ficou em silêncio, por não encontrar resposta.

- Sei que viveste feliz, António. Por seres um vencedor?

- Sim, claro que sim. Quantos homens são vencedores? – intrigou-se.

- O que faz de ti um vencedor?

- A forma como me dedico ao trabalho, o meu profissionalismo, o meu esforço para ir mais além do que me é exigido, o enorme espírito de equipa que me permite estar sempre disponível e ser o campeão da colaboração com os meus colegas, a superação dos objectivos, a minha capacidade de negociar e de fechar negócios, a forma como visto a camisola da empresa e a faço ganhar sempre. – tinha a voz inundada de orgulho.

- São quase 20 anos desse sucesso… - esperou que António concordasse e assim aconteceu.

- Sim, e orgulho-me disso, do sucesso, de ser um vencedor, reconhecido e admirado, isso sempre me encheu de alegria.

- Esse sucesso, distribuíste-o pela tua família, em benefício de todos?

António voltou a hesitar; detestava quando se sentia hesitante, sem a resposta certa a sair-lhe na voz. Ficaram em silêncio.

- Foi pela minha família que sempre trabalhei, para que nada lhes faltasse… - assim que terminou a frase, António sentiu na boca um travo forte de desculpa, sem saber bem porquê nem de quê.

- E tu, a tua presença, a tua atenção, o teu cuidado, o teu carinho, estiveram sempre lá? Esteve lá a tua disponibilidade e a tua colaboração? Trazes a camisola da tua família vestida? A tua alegria foi também a alegria deles?

Pela primeira vez António não se sentiu vencedor e sentiu-se envolvido de desagrado. Baixou os olhos, ficou em silêncio.

- Estou morto? – perguntou a si mesmo.

 

Fernando Couto


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