Por coincidência ou não, a verdade é que quando me preparava para escrever sobre o tema “Vencedores”, abro ao acaso o livro “Cartas a uma Noiva”, de Maria Amália Vaz de Carvalho, uma edição de 1946, que havia comprado a um alfarrabista e, imediatamente, os meus olhos se perdem nestas palavras: “Ou as cousas nos vencem, ou são vencidas por nós.”
Sorrio…
É isso mesmo!
No nosso dia-a-dia chegam-nos de todos os lados exemplos de pessoas que, perante situações difíceis, arregaçaram as mangas, encheram-se de coragem e foram à luta!
Gente que, não se deixando vencer pela doença, pelo medo, por vícios, por crises financeiras ou outras, conseguiu dar a volta e de alguma forma escrever o seu próprio final feliz.
Estas histórias repetem-se porque servem de inspiração a todos os que atualmente sofrem, como aos que poderão, num futuro próximo, vir a estar em situação de igual fragilidade e sofrimento.
Ouço estas histórias de vencedores e questiono-me sobre aqueles de que ninguém fala, que também não se conformaram com o destino que lhes foi traçado, que também arregaçaram as mangas e foram à luta e lutaram até ao fim mas não tiveram um final feliz…
Não serão também estes uns vencedores?
Maria Amália Vaz de Carvalho no livro referido anteriormente diz: “Vencer é saber extrair, de cada situação em que nos acharmos, aquela sabedoria que ensina os que a possuem a proceder e a pensar do modo mais justo.”
Há tempos, cruzei-me com V, um moçambicano a viver em Portugal há muitos anos. Aqui trabalhou toda a vida, tendo sido dispensado, à beira dos 60 anos, porque a empresa onde trabalhava fechou.
Não tem família em Portugal e à que tem em Moçambique e lhe diz para regressar, ele responde “Um dia…”.
A mim confessa que queria muito voltar a sentir o cheiro de África, mas não tem dinheiro para a viagem e também não quer ir sem nada e ficar a depender da boa vontade da família, que está longe de imaginar como estes últimos anos têm sido difíceis.
Pelo rosto caem-lhe lágrimas que não consegue evitar, mas pressinto-lhe nas palavras alguma esperança e na forma como mexe as mãos adivinho-lhe uma enorme força de vencer.
A solidão, o desespero e a angústia para que foi atirado, juntamente com o apoio de alguns amigos, fizeram-no descobrir a pintura.
Nunca tinha pintada ou desenhado!
Nunca teve aulas de pintura!
Um dia, como que por milagre, ou talvez para espantar os males que lhe iam na alma, pegou num papel e num lápis e começou a desenhar.
E esse foi o primeiro dia do resto da sua vida.
Passou a aproveitar tudo o que fosse papel, bem como todo o material de pintura a que tinha acesso - alguns amigos eram pintores e davam-lhe restos de tintas e pincéis antigos; chegou a comprar lápis e canetas em lojas chinesas porque o dinheiro não dava para mais – e começou a desenhar e a pintar como se não houvesse amanhã.
A paixão pela pintura estava-lhe no sangue e ele sem o imaginar!
Tem vindo a aperfeiçoar a técnica e, incentivado por amigos, começou também a vender alguns trabalhos para poder comprar materiais de melhor qualidade.
Apesar das enormes dificuldades, nunca desistiu.
Vi alguns das suas “pequenas obras de arte”, como ele, num misto de ironia e humildade, lhes chama e fiquei maravilhada!
Cada uma é uma história, um estado de espírito que ele me descreve com todos os pormenores e contextualizados, quer no espaço, quer no tempo, quer nas emoções.
Comprei-lhe duas pinturas e ele ofereceu-me a terceira, que tenho junto à secretária e para a qual os meus olhos fogem demasiadas vezes.
À minha frente estende-se o Tejo, com a Ponte 25 de Abril a levar-me para a minha Lisboa do coração, num céu pintado a mil cores, com um sol lá ao fundo que não se vê mas se sente e lembra o homem inconformado que partiu em busca de um novo rumo para a vida.
Não sei como terminará a história de V, se vai conseguir sobreviver com os seus quadros, se conseguirá o dinheiro suficiente para voltar a África, mas sei, porque o senti em cada traço do lápis que lhe deslizava entre os dedos que o V é um vencedor!
Acredito que em tudo há um lado bom e um lado mau, e que o que talvez nos distinga uns dos outros seja a forma como encaramos e lidamos com as situações e se permitimos que, perante as dificuldades, “as cousas nos vençam ou sejam vencidas por nós”.
Porventura farão algum sentido as palavras que ouvi de um miúdo, à porta da escola, a propósito do filme que a professora de Ciências tinha mostrado nesse dia (utilizo “bolas” e “caraças” em alternativa às palavras usadas pela criança por considerar que essas não eram apropriadas neste contexto):
“Bolas! Como é possível aquele espermatozóide ter conseguido passar a parede do óvulo? Eram tantos, porque é que só aquele conseguiu? Deve ter corrido mais depressa do que os outros… É um vencedor do caraças!”
Cristina Vieira (articulista convidada)