Desde que se mudou para o barraco, junto à estrada, que o barulho e o trepidar dos primeiros autocarros são o seu relógio despertador.
Acordou com a sensação de ter um corpo junto ao seu. Abre os olhos esfrega-os e volta a abri-los... parecia tão real!... Foi apenas o desejo a levar a melhor sobre a realidade, a sua Sacha está lá longe na cidade fechada de Vladivostok.
Desde que o governo instalou a base militar naval que a cidade deixou de estar aberta aos turistas e visitantes. Foi aí que ficou a sua companheira. O que ganha, mal dá para a renda de casa, mas com a ajuda dos pais e os restos que leva da cozinha da base militar onde trabalha, tem conseguido criar as três filhas.
Sente frio, o corpo é sacudido por um arrepio, instintivamente cruza os braços e aperta-os contra o peito, está vivo, e pela frente outro dia.
Mais um dia igual a tantos outros desde que deixou a sua terra bem longe, junto aos Urais. Tinham-lhe dito que na Europa a vida tinha outro brilho, não faltava onde trabalhar e os ordenados compensavam a distância. Com alguma sorte podia mandar algum para a terra e bem poupadinho, em pouco tempo poderia dar a Sacha a casa que lhe garantira virem a ter, um quarto grande para as meninas e cá fora um espaço para brincar e pôr uma mesa grande para reunir toda a família nos dias de festa.
Varre com o olhar o espaço exíguo onde se protege da chuva e do vento. O frio, esse continua lá; não há manta que aqueça a alma.
Já não se lembra da última vez que alguém lhe dirigiu a palavra, que o tratou pelo nome. Pronuncia-o só para si, baixinho e devagar Iiiggor. Quando miúdo, se a mãe se zangava, chamava-o carregando no “o” e arrastando o “r”, Igórrr.
Com a lembrança da mãe o rosto perdeu rigidez e deu lugar a um tímido sorriso.
Sozinho, sem pressa de voltar a ganhar compostura, continua a sorrir e com demorado prazer repete baixinho: “min a zabut” Igor...
Cidália Carvalho
Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 10:43  Comentar