11.12.12

 

No exercício da cidadania cometem-se, todos os dias no mundo, verdadeiras atrocidades. Todos clamam os seus direitos, ninguém proclama os seus deveres. Gostava muito de enaltecer as vantagens de uma cidadania exercida em pleno mas é difícil concentrar-me nessa tarefa quando o vizinho escarra para o chão, na porta da entrada e ainda se indigna porque lhe digo “bom dia”. Momentos tão singelos quanto este acontecem aos magotes, toda a santa jornada. Quase aposto que, se cada um de nós tentar visualizar o seu dia de hoje, não faltarão exemplos que, infelizmente, corroborem esta teoria. Partilho alguns dos meus.

 

Há tempos, depois de uma corrida alucinante para apanhar o autocarro, chego no segundo exato para lhe fazer paragem. Nem queria crer. Ao subir o primeiro degrau, deparo-me com uma senhora com bastante idade, debilitada, com uma canadiana e dois sacos pesadíssimos. De imediato, tirei-lhe os sacos, coloquei-os no passeio e de seguida, auxiliei a senhora a descer do autocarro. O motorista fechou a porta e arrancou. E eu fiquei ali no passeio, com cara de parva. Nem “piu” tive tempo de dizer. Abençoado…

 

Em contexto de trabalho, numa escola que mais parece um anúncio da Benetton, com lindas crianças de todas as partes do globo, uma criança com 4 anos exclama: “a minha mãe disse que eu não posso brincar com pretos nem com deficientes”. Tal e qual. Que direito tem aquela senhora de corromper o seu filho, vetando-o ao direito de crescer isento de preconceito e mediocridade? Porque não há uma pena para estes pais?

 

A atravessar uma passadeira, aprecio uma jovem mãe, a empurrar o carinho de um bebé e uma pequena menina, não teria mais que 3 anos, a atravessar também a passadeira, alguns metros atrás da mãe. A dita senhora foi incapaz de andar ao seu lado, de lhe dar a mão ou de sequer olhar para trás mas vociferou, com uma vontade louca, uma quantidade triste de impropérios irrepetíveis. Se eu fosse aquela menina e tivesse um encontro imediato de primeiríssimo grau com uma viatura, ia fazer figas para ficar de vez estendida. Tudo, qualquer coisa, seria melhor do que o castigo da mãe (leia-se “oh filha da p#$&, se te passa um carro por cima, ainda te f%$# os cornos, oubistes benhe? Anda lá, mexe esse cagueiro… estás-me a probocar. É isso que queres… não mexas o cu, não, que te rebento”. Que pérola.

 

A Maria casou com o Zé há 32 anos. Toda a vida levou porrada. A mãe, por sua vez, já vivia esta situação com o pai da Maria. A Maria sofre em silêncio porque “é suposto que assim seja”, porque “entre marido e mulher não se mete nem uma colher de sobremesa”, porque se o Zé lhe bate “é porque merece”. A história da Maria e do Zé podia ser a história de milhares de outros seres humanos. E não é privilégio feminino. Também os homens são vítimas de violência doméstica e, por uma cultura de formatação numa sociedade ainda machista e redutora, não se queixam. Têm vergonha.

 

O Alfredo mandou matar os pais pela ganância das suas poupanças. Nunca mais morriam e o Alfredo tinha pressa e planos, não queria esperar mais. Pôr fim à vida dos dois seres que o geraram e protegeram toda a sua vil existência, custou-lhe cem euros. Uau…. As poupanças, não as gozou. Está de licença prolongada num spa prisional.

 

Não vejo telejornais para não me dar à depressiva anestesia em que vive quase toda a gente. Gosto da informação informativa, não da que explora a desgraça alheia, as lágrimas, as dores de quem deseja carpir em silêncio. Leio os jornais, consulto a Internet e apesar de todos os pesares, não perco a fé na raça humana. Não perco a esperança. Há pessoas que exercem a cidadania com muito mérito e empenho. Ainda assim, quando deixaremos de ler notícias em que uma criança de 15 anos é morta porque se recusa a casar com um primo? Quando é que os pais serão obrigados a respeitar os filhos e os filhos saberão crescer com o máximo de respeito pela vida alheia, pela vida dos pais e de todos os que consigo caminham? Quando é que a cidadania será realmente efetiva, coesa, transcendente, universal?

 

Alexandra Vaz

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 18:00  Comentar

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