- O que tenho quando já nada tenho? O que resta quando já nada resta? O que posso quando já nada posso?
E dito isto, em voz baixa, deixou-se escorregar encostado à parede fria até sentir o chão, e sentou-se na terra. O olhar continuou estendido até à torre da guarda que brilhava lá longe e alta, sobranceira. Cruzou os braços sobre os joelhos fletidos e sobre eles pousou a cabeça. Ficou imóvel, respirava lentamente, com a serenidade de quem é senhor da sua certeza. E pensou:
- O que podem tirar mais? Nada mais podem tirar! Nada mais há para tirar! Prenderam, humilharam, insultaram, cuspiram, fustigaram, feriram, maltrataram, torturaram. Injustiçaram, falsearam, mentiram, esconderam, expulsaram, extraditaram, expuseram, roubaram, destruíram. Enganaram e condicionaram. Mas aos meus sonhos, nunca, nunca, conseguirão chegar. Eu sou os meus sonhos, no que sou de mais livre, resistente, temerário e heroico. Os meus sonhos são o meu espírito, as minhas emoções, o meu refúgio, a minha motivação e a minha força, o meu querer e o me poder. São o meu grito de revolta, a expressão intacta da minha dignidade. Sobrevivo graças aos sonhos e vivo por eles.
Continuou imóvel, sentado com a cabeça pousada sobre os braços, a sonhar, a ser Homem.
Fernando Couto
Foto: Campo Auschwitz I