20.3.17

Doll-Alexandra.jpg

Foto: Doll - Alexandra

 

Logo de manhã, cerca das nove horas, ouve-se o primeiro grito. Claro que este é seguido por outros, curtos, intensos como os gritos devem ser. Sentado na secretária capto o estímulo auditivo. Preciso apenas de uma fração de segundo para o integrar e compreender. A única ação da minha parte é partilhar com a minha colega de gabinete: "É o F.". Evidentemente que tal era desnecessário. A minha interlocutora não precisava que lhe dissesse de quem se tratava. Não porque o F. seja o único a gritar no local onde trabalho. É sim apenas mais um que também grita. O grito é-nos familiar pelo volume, timbre e colocação. O F. não fala. Nunca o fez. Também não anda e depende de terceiros e de uma cadeira de rodas. Geralmente o F. tende para a indisposição e isolamento. Comunica de forma muito rudimentar e maioritariamente as expressões comunicativas prendem-se com a satisfação de necessidades básicas. Comunica com o corpo, mobilizando as partes que consegue e expressa-se com o som, ausente de palavras mas com contundência relevante.

 

A M. entra de rompante no meu gabinete. "Ó Rui..." inicia ela antes de ser interrompida por mim com um "Bom dia M.". A interrupção surte o efeito desejado e ela responde de volta "Bom dia Rui", colado ao que a levou ali: "Bom dia Rui, quero o desenho de um palhaço". A rapidez com que entrou, a forma como se mexeu, o modo como falou e a sua imagem corporal revelam imediatamente que a M. não está bem. Dou-lhe o desenho e digo-lhe para ir para a oficina de pintura. A experiência por vezes antecipa de forma rigorosa o futuro e, claro, passado algum tempo ouço os gritos. Vêm da esquerda da minha porta e são os habituais. Alguns sem conteúdo, outros insultuosos. Murros nas portas, vidros e cuspidelas. E mais gritos e insultos. A M. é acompanhada para uma sala para efeitos de vigilância e segurança.

 

O C. passa grande parte do seu dia sentado na cadeira de rodas adaptada. Tem paralisia cerebral e não fala. Abre o sorriso quando me vê e agita os braços descontroladamente. Fá-lo não por querer, apenas porque não consegue controlar a tonicidade muscular. Quando olha para a minha mão ele percebe ao que venho. Tal como lhe prometi trago-lhe uma revista nova de automóveis. Recebe-a nas mãos e quase a rasga, enquanto expressa a sua gratidão com sorrisos e gritos. Muitos.

 

O grito é um instrumento comunicativo poderoso. É universal. Pode comunicar uma situação de urgência, dor, desconforto, necessidade e até alegria. A comunicação Humana, como todos sabemos, é extremamente complexa. Reveste-se das mais variadas formas e intencionalidade. O grito é apenas mais um veículo de comunicação. E este foi apenas mais um dia.

 

Rui Duarte

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 07:30  Comentar

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