6.3.17

Robin-NathanOwen-Price.jpg

Foto: Robin – Nathan Owen-Price

 

Grito. Antes mesmo de compreender, grito:

- Meu primeiro impulso reativo, minha ancestral defesa. Meu instinto original, herdado em sangue. Meu pecado inocente, meu refrigério.

- Meu aviso de guerra, minha fúria dilacerada. Manifesto de horror, garganta ardendo em sedição. Minha raiva acumulada dilacerando decibéis.

- Meu vício de prazer, minha loucura. Meu urro de vitória anunciada. Salva de estridências e de júbilos erguendo-se no céu despreparado.

- Meu canto de cisne, minha alvorada. Cântico longilíneo sobre a terra. Meu espinho bíblico, minha aflição. Meu voo já sem forças de partir – minha cruz primordial.

 

Eu garanto: só tinha a intenção de, em jeito de preâmbulo, reportar-me à definição da palavra “grito”, e, daí, esperar partir para algo que validasse o meu artigo (por sinal já em atraso) do mês de Fevereiro. Mas, como quase sempre me acontece, a palavra decompôs-se-me em frases que me transportam os dedos numa viagem sem hora de regresso – sim, porque as palavras são como as paisagens, atingem-nos, abraçam-nos, marcam-nos... seduzem-nos. As linhas de horizonte são infinitas, atrás de um monte vem outro monte, atrás de uma imagem, vem outra, e outra, e outra...

 

E o meu grito, aquele que, enfim, me calha como breve apeadeiro, nasce magma vivo contorcendo-se no meu papel, cala em si um sinónimo de angústia – reconheço-o, é um grito de Dor. Transporta em si torrentes de sentimento: é rio indomável, nada sobrevive em si, ele sobrevive em tudo, nada lhe serve de margem, ele é a própria margem. E acarta estilhaços de alma na corrente, não como flutuantes pedaços de madeira, mas como bracejos de velas, lutando para não naufragar. A pulso, sobe, cresce para mim, agiganta-se. Raia de púrpura os ocidentes, asfixia horizontes, esgazeia os olhares que encontra, rasga gargantas. E solta-se, enfim, em estridor de foz e expiação.

Sobe ainda, vertiginoso, em decibéis de asas feridas, descobre-se em liberdade, perde-se no vazio... e desce aos infernos, em ecos de grutas petrificadas pela indiferença (os seus muros de lamentações já se habituaram aos voos sinistros de sombras vampíricas).

Cai, por fim, sob o silêncio de um crepúsculo avermelhado. As estrelas que chegam, acusam o estertor ribombante do seu último suspiro e tremem, como as minhas mãos de memórias vivas.

A noite dobra-se sobre si mesma, veste-se de luto – o grito morreu!

 

Mas amanhã... amanhã a aurora vai ser cor de rosa e pássaros novos irão aprender gorjeios de uma sinfonia que reinventarei – as palavras são música, também, se quisermos… e a Vida continua. Sempre. Apesar de todos os gritos.

 

Teresa Teixeira

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 09:30  Comentar

Pesquisar
 
Destaque

 

Porque às vezes é bom falar.

Equipa

> Alexandra Vaz

> Cidália Carvalho

> Ermelinda Macedo

> Fernando Couto

> Inês Ramos

> Jorge Saraiva

> José Azevedo

> Maria João Enes

> Marisa Fernandes

> Rui Duarte

> Sara Silva

> Sónia Abrantes

> Teresa Teixeira

Março 2017
D
S
T
Q
Q
S
S

1
2
3
4

5
6
7
8
9
11

12
14
16
18

19
21
22
23
25

26
28
30


Arquivo
2019:

 J F M A M J J A S O N D


2018:

 J F M A M J J A S O N D


2017:

 J F M A M J J A S O N D


2016:

 J F M A M J J A S O N D


2015:

 J F M A M J J A S O N D


2014:

 J F M A M J J A S O N D


2013:

 J F M A M J J A S O N D


2012:

 J F M A M J J A S O N D


2011:

 J F M A M J J A S O N D


2010:

 J F M A M J J A S O N D


2009:

 J F M A M J J A S O N D


2008:

 J F M A M J J A S O N D


Comentários recentes
Entendi a exposição, conforme foi abordada mas, cr...
Muito obrigada por ter respondido ao meu comentári...
Obrigado Teresa por me ler e muito obrigado por se...
Apesar de compreender o seu ponto de vista, como p...
Muito agradecemos o seu comentário e as suas propo...
Presenças
Ligações