29.1.16

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Foto: Crowd Of Faces – Dawn Hudson

 

Não será excessivo afirmar-se que o “fenómeno do poder” está presente em todas as situações da vida, nos atos mais elementares do ser humano, sendo essencial à sociedade. Na verdade, tudo na vida gravita na sua órbita de interesses. Desde os primórdios do tempo que o Homem se sente compelido pelo poder. Daí a sua incessante busca pelo poder através dos tempos e sob as mais diversas formas.

A sua omnipresença revela-nos que, além de ser uma necessidade social, é inerente ao Homem, a este está intimamente ligado. Só entre os Homens existe poder.

Num sentido amplo, o poder exprime-se na capacidade de alterar o mundo exterior. É a capacidade de produzir efeitos externos, quer sobre coisas, quer sobre seres humanos, num dado instante e lugar. Quando não pode alcançar efeito não é poder, simplesmente não existe. Por outras palavras, o poder potencial existe se e enquanto se pode efetivar no mundo exterior, se e enquanto se pode tornar poder efetivo.

Importará, porém, distinguir e precisar que o poder que exercemos sobre as coisas, traduzido na capacidade de cada um poder modificá-las, utilizá-las, consumi-las ou destruí-las, é o poder que se inscreve no conjunto de aptidões próprias e naturais do ser humano.

Por contraditório que pareça, o poder, só por ele pode ser dominado, limitado, influenciado e disciplinado, sendo caso para dizer com muita propriedade que o poder está por detrás de tudo na vida quotidiana.

Desde sempre, e de uma forma ou de outra, mercê da sua origem, o poder orientou, influenciou e comandou as nossas vidas, para o bem e para o mal, quer pelo seu exercício sobre algo ou alguém, quer nos estados de sujeição ou de submissão do ser humano.

 

Mas afinal como se define concretamente o Poder? A sua definição não é fácil, atenta a diversidade de sentidos que pode assumir. Diremos mesmo que uma discussão sobre o poder não tem fim. Porém, enquanto fenómeno de interação, podemos defini-lo como a capacidade de impor, direta ou indiretamente, determinados interesses numa dada situação social.

É um facto incontroverso e incontrovertível que tanto o poder físico como o poder moral estão presentes nas relações interindividuais, nas relações entre os Homens.

O poder físico aparece, não raras vezes, como meio ou instrumento do poder moral, utilizado e manipulado ao serviço da mente do Homem, contribuindo dessa forma para as chamadas ”doenças do poder”, cujo exercício é orientado em determinadas situações para o mal, como tem acontecido ao longo da história da humanidade.

Mas o poder não deve ser visto apenas ao nível de uma relação simétrica entre, pelo menos, dois atores. De facto, no âmbito da interação não podemos deixar de considerar a agregação de comportamentos, como o resultado de forças reunidas em grupo. E, nesta perspetiva, o que se disse a respeito do poder nas relações interindividuais aplica-se obviamente ao que se passa no seio dos grupos.

A força do poder está sempre presente, quer nas relações interindividuais quer nas relações no âmbito dos grupos.

Caberá ao Homem, para bem da humanidade, saber lidar com o Poder.

 

José Azevedo

 

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25.1.16

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Foto: Wheelchair – George Hodan

 

No primeiro dia deste ano ultrapassei a marca dos 15 anos de lealdade institucional. A história do primeiro passo nesta caminhada tem contornos rocambolescos que, em variadíssimas ocasiões, foram alvo de lembrança. Do inesperado convite à, talvez, inusitada recusa da minha parte. Contudo, lá fui e por lá fiquei.

Confesso que a minha memória nunca foi o que deveria ser. Factos, pessoas e lugares por vezes perdem-se, ou por outra, não existem. Porque para se perder tem de se possuir. E muitas lembranças, na verdade, nunca o chegaram a ser.

Mas sim, recordo o dia 1 de Janeiro de 2001 como se fosse hoje. O acolhimento, a espera, a entrevista. A partir desse último momento e claro, sem o saber, tracei enorme parte do meu destino profissional. Assim como da minha posição na vida e até mesmo da minha personalidade.

 

Há 15 anos (e uns dias) que trabalho com pessoas com deficiência intelectual (DI).

No âmbito da intervenção com estas pessoas e no decorrer desta década e meia, muito mudou. A começar pelo nome que damos às coisas. Ainda apanhei relatórios com “oligofrenia” e “debilidade mental” escritos. Já eu usei “deficiência mental”, “atraso mental” e agora “deficiência intelectual”. Curiosamente, as pessoas continuam a ser pessoas. Algumas as mesmas e, infelizmente, outras já não.

Há 15 anos atrás, olhar socialmente para a deficiência era aprender lugares comuns. “Coitadinhos”. “São como crianças”. “É preciso tomar conta deles”. Hoje em dia gosto de pensar que já não é assim. Noto que, sobretudo nos jovens que nos visitam ou fazem estágios, apesar do desconhecimento compreensível acerca do assunto, a visão que têm da deficiência é mais positiva e inclusiva. Daqui deduzo, de forma esperançosa, que a sociedade civil tem demonstrado interesse e evolução de pensamento.

 

Um dos desafios atuais é trabalhar COM a pessoa com DI, com a sua família (ou cuidadores, ou significantes) e com a comunidade. E desafio porquê? No início do meu trajeto institucional, por brincadeira dizia que gostaria de receber 5 euros por cada vez que ouvia “os senhores doutores é que sabem”. O peso desta frase era tremendo. Nessa situação delegava-se em nós, técnicos, a responsabilidade de decisões com caráter vinculativo na vida de outras pessoas. Claro que existiam casos em que havia uma partilha de ideias, de visões, interesses e decisões. Contudo, mesmo aí, as reuniões para o efeito não incluíam o sujeito principal. O “poder” das decisões viajava assim entre dois campos: as equipas técnicas simplesmente, ou equipas técnicas mais famílias/cuidadores. A pessoa com DI era o cliente de serviços escolhidos no seu melhor interesse, mas sem a sua opinião no desenho dos mesmos. Saliente-se contudo que ninguém participava em algo que não quisesse! Depois de pensado e posto em prática um plano (anual) para uma determinada pessoa, esta poderia recusar o mesmo. Até mesmo na sua totalidade. Mas tal, na minha experiência, nunca aconteceu. As recusas em participar nas atividades propostas eram (e são ainda) pontuais.

 

Voltando ao desafio. A sociedade civil já percebeu que também é (e terá de continuar a ser) responsável pela inclusão das pessoas com DI. As famílias/cuidadores já perceberam que são co-responsáveis pelo desenho do plano de vida dos seus significantes. As equipas multidisciplinares que trabalham com as pessoas com DI, evidentemente. Coordenar tudo isto, como poderão calcular, não é fácil.

O “poder” sobre a vida das pessoas com DI nunca esteve tão espartilhado e, na verdade, tão digno. Quantos mais atores mais recursos e, porque não, maior supervisão. Sobra contudo a razão de tudo ser. Paradoxalmente, encontramo-nos há algum tempo numa situação peculiar. O elemento mais importante do processo é também o último a ter poder sobre si. E igualmente importante, ter a perceção do mesmo e o que tal significa. Apesar de não serem ideias novas, noções como “empoderamento”, “autorrepresentação” ou “autodeterminação” continuam frequentemente a fazer parte de um léxico técnico que é difícil de operacionalizar institucionalmente, ou de transmitir para o núcleo individual. Simplificando, poderei dizer que as pessoas com DI não estão habituadas a que lhes perguntem o que querem no dia-a-dia. No geral. Quantas vezes tal acontece com situações simples? O que querem comer? O que querem vestir? Como querem o corte de cabelo?

Complicando, posso afirmar que as pessoas com DI não estão habituadas a que lhes perguntem o que querem para a sua vida. No geral. Que atividades querem fazer? Onde gostariam de estar? Que sonhos têm? Onde querem chegar?

 

Voltando ao desafio. Que se espera então do futuro na relação com as pessoas com DI e na relação delas consigo mesmas? Que todos os atores (a pessoa com DI, as famílias/cuidadores, as organizações sociais, educacionais, da saúde, da justiça, etc.) sejam parceiros no desenho e prossecução de planos de vida dignos, eficazes, participados e inclusivos. Que todos percebam os seus direitos e os seus deveres. Que todos compreendam que para além de todo o resto, a condição humana na sua individualidade é merecedora da felicidade e do sonho. E que o poder para tal está no âmago de todos nós. Se um não o sabe ou não o compreende, então um outro tem o dever de participar nessa descoberta.

 

Rui Duarte

 

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22.1.16

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Viajava sempre de comboio. Todos os dias, à mesma hora matutina, sempre do lado da janela. Era o meio de transporte que a levava para o trabalho. Durante a cerca de meia hora na carruagem da locomotiva, aproveitava para viver a sua vida imaginária. Ou então, a dos outros. Observava as pessoas que a rodeavam na carruagem, imaginando-lhes a história, tentando na sua mente descobrir-lhes propósitos de vida, anseios, sonhos, o que as movia. Era assim que se distraía até à paragem que a esperava todos os dias.

No início, não entrava sempre na mesma carruagem. Ia variando, para ver outros rostos, imaginar outras histórias, conhecer novos desconhecidos. Numa dessas vezes houve alguém que lhe chamou particularmente a atenção. A partir daí começou a entrar sempre na última carruagem e adquiriu o hábito de muitos, que é sentar-se sempre no mesmo lugar. Um lugar… privilegiado. Criou uma rotina que lhe trouxe algo novo, ou será que foi a novidade que lhe incutiu a rotina daquele banco sempre à sua espera? Seja como for…

 

Em todas as viagens da manhã, as reais e as imaginadas, lá o encontrava. Não, não! Isto não é a história de um amor/paixão platónica! Ele entrava sempre três, quatro paragens à frente da dela. Sempre que o comboio se aproximava lá estava ele, no sítio do costume, quase como se tivesse uma cruz a marcar o seu lugar. E a rotina repetia-se a cada manhã: guardava, meticulosamente e com a mais perfeita minúcia, o trompete na mala. Sempre os mesmos gestos… Gestos e uma figura que a fascinavam. Muitas vezes, quando o comboio se aproximava daquela paragem, ela ouvia as últimas soadas saídas do trompete, que invadiam a aldeia. Quase como que se aquele homem fosse o guardião daquela terra e o seu propósito fosse despertar do sono todas as pessoas que lá viviam, com o som do seu trompete. Como se essa fosse a marca de um novo dia. De seguida, cuidadosamente, limpava e guardava o instrumento. E ela via tudo isto da janela do lugar que passou a ser o seu.

 

Quando ele entrava no comboio, ela dava logo pela sua presença. Passava sempre ao seu lado, sentava-se sempre no mesmo lugar: à janela, como ela, mas do outro lado do corredor e de frente para que ela lhe pudesse ver o rosto. Era alto, robusto, devia estar na casa dos 40, talvez um pouco mais, olhos claros - nunca percebeu se azuis ou verdes - e, como o frio já apertava, usava sempre um gorro. Não era português, talvez fosse russo ou oriundo de algum país de leste. Parecia afável e simpático e trocava sempre algumas palavras com o revisor. Imaginava ela que já os conhecesse a todos.

Tinha uma postura carismática, diferente, pensava, sentindo que ele sentia que este era o país onde realmente estava em casa tal o à vontade com que se movia. Uma aura que não sabe caraterizar pairava junto a ele, aguçando-lhe a curiosidade sobre aquele homem e a sua história. Nunca chegou à fala com ele, mas adivinhou-lhe a história tantas vezes quantas aquelas em que o viu. Imaginava-lhe a vida, os sonhos, a chegada a Portugal, o destino da viagem e o que fazia quando lá chegava.

 

Sonhava ela que o destino dele era o Porto, sem conseguir perceber, ao fim de algum tempo, se isso era fruto da sua imaginação ou de algo que tenha ouvido das conversas que ele tinha com o revisor. Imaginava-o músico de rua ou professor numa escola de música conceituada. Ou ambas! Não era alguém que ligasse a aparências, convenções ou ideias pré-concebidas. Mas, sem dúvida, que era sábio, uma sabedoria que a deslumbrava. Pensava que, enquanto passeava pelas ruas portuenses, se iria cruzar com ele, atraída e chamada pelo som da sua música.

A sua figura fascinava-a, sem saber bem o porquê. Nunca lhe soube nada, senão as histórias que inventava na sua mente. Achava que nunca foi ter com ele para o conhecer, porque assim a sua história podia caminhar em direção a todas as possibilidades. A admiração por aquele ser não tinha limites. E era disso que se tratava nesta experiência, pensou: uma admiração profunda por alguém que não conhecia verdadeiramente, mas que exercia em si tal poder que realidade e imaginação se confundiam, trazendo-lhe, por momentos, algo dessa pessoa que lhe enchia alma e coração. E era também incrivelmente fascinante, acreditava, o poder das pessoas… sobre as outras pessoas, mesmo aquelas que são desconhecidas. Transmitiam-lhe algo, despertavam-lhe a curiosidade, traziam novidade à sua rotina.

E a rotina de um, o músico, e em consequência a rotina do outro, a menina, fizeram com que ambos, desconhecidos, se encontrassem num lugar que se chama imaginação.

 

Um dia, a menina ainda conhecerá a verdadeira história daquele músico…

 

Sandra Sousa

 

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20.1.16

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Foto: Singer In Pub – Anthony Maragou

 

De alguma forma nos acostumamos que “poder” é algo para poucos, distante, fora do alcance. Está sempre na mão de outro; do presidente; da Angela Merkel. Mas nunca em nossas mãos. É um daqueles verbos que na maioria das vezes conjugamos no pretérito imperfeito e nos habituamos, com essa conjugação, a ver as nossas possibilidades em um tempo que não mais alcançamos.

- Ah! Se eu pudesse! Eu iria fazer aquela viagem que eu sempre sonhei... mas não consigo, não me sobra dinheiro e também não tenho tempo.

- Se eu pudesse iria aprender a cantar, mas já não tenho mais idade para isso.

- Se eu pudesse queria voltar a vestir aquele vestido preto de que eu tanto gostava, mas não consigo mesmo fazer dieta...

 

Recorrendo ao dicionário, encontramos uma definição muito simples mas bastante esclarecedora do verbo poder: ser capaz de ou ter ocasião ou possibilidade de. Com essa ajuda, o verbo “poder” parece um pouco mais acessível.

Ser capaz de fazer alguma coisa é algo que depende em primeira instância de nós mesmos. Algo que está em nossas mãos e nas escolhas que fazemos todos os dias.

Claro que a vida não é tão simples assim. Para a maioria dos seres humanos a vida apresenta imensos desafios e, é sim mais fácil pensar que “poder” faz parte de um passado imperfeito, algo que não nos pertence e fica assim resolvido. Vamos levando a vida e em meio a tantas tarefas, prazos, metas, lá de vez em quando pensamos: Ah! Se eu pudesse!

 

Seguimos envelhecendo e carregando um “saco” de impossibilidades e frustrações, nos tornamos de verdade pessoas impossibilitadas de levar adiante um propósito. Poder não é uma circunstância que nos é dada, na maioria das vezes não. Sem dúvida que ganhar no euromilhões nos faz poder muitas coisas, mas poucos têm essa sorte. Para nós, reles mortais, nos resta construir as nossas possibilidades. Talvez neste momento não lhe seja possível mas com algum planejamento financeiro, em dois ou três anos, pode fazer aquela viagem tão sonhada. Se não podes ficar um mês, vale refazer os planos e passar uma semana. Mas é preciso ser capaz de planejar, de guardar dinheiro, de abrir mão de coisas menos importantes. Vale a pena fazer um exercício de gramática e conjugar o verbo poder no presente: eu posso! Se não pode agora, é uma questão de tempo…

 

Leticia Silva

 

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18.1.16

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Foto: Gone Fishin - Michal Spisak

 

Dá às palavras a liberdade de não serem. Toma-as gentilmente como se as levasses numa dança e põe-nas a dormir. Aconchega-as com um cobertor que o frio hoje aperta. Mas deixa-as.

Já viste que mesmo sem elas continuamos juntos olhando o infinito sem nada falar e no olhar tudo dizer? Deixa as palavras! Porque elas castram, obliteram, ferem, obrigam, falham em promessas que não poderão ser cumpridas e, no fim dos tempos, serão esquecidas.

Eu sei que é uma visão muito parcial, injusta até, porque o verbo também existe para libertar, para salvar, para aproximar, para curar… Mas para nós, que hoje faz frio lá fora, esta é a nossa verdade. A quietude é a nossa doutrina.

No silêncio também se vencem batalhas e se conquistam cidades. No silêncio, acolho todas as palavras que me acenas com um sorriso, com um gesto. E no silêncio, sorri a minha alma que te respira cada poro.

Juntos no silêncio, juntos em qualquer ruído e sempre em todas as melodias.

 

Ana Martins

 

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15.1.16

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Foto: Mi-galaxia – Consuelo Suarez

 

Quando alguém decide estudar o efeito que os astros têm na vida, ou no destino, ou nos acontecimentos de cada um, poderá questionar-se até que ponto existe, de facto, algum fado impossível de alterar, ou se através da força da vontade se pode alterar a roda do Destino.

 

Se temos em nós a vibração do Universo, o que podemos fazer com ela?

Estas questões que tanto entusiasmam (ou deprimem) os pensadores têm tantas verdades quantos questionadores. E porque a vida é um ato de fé, apenas posso falar daquilo que sinto.

Pois bem, dizia eu que, quando alguém decide estudar o efeito dos astros na vida, pode constatar que os planetas dançam entre si formando aspetos que podem ser tensos ou harmoniosos. Será fácil inferir que, quantos mais forem os aspetos harmoniosos, melhor a vida flui e, pelo contrário, a vida será mais desafiadora se se verificarem mais aspetos tensos…. E muitas vezes é mesmo assim. Porém, o que também é muito curioso, é que muitas pessoas bem sucedidas têm no seu mapa de nascimento a fotografia de muita tensão planetária. Supostamente, teriam maior probabilidade de viver uma vida difícil…. Como se os planetas fossem duros mestres, essas pessoas ultrapassaram os desafios propostos e evoluíram nas suas vidas.

 

E é aqui que quero chegar. Ainda que a força cósmica nos possa ter colocado num ponto de partida menos afortunado, ou criado ao longo da existência situações de perda, dor ou tristeza, deu-nos também Poder. O poder de agir perante esses mesmos acontecimentos. Podemos não ter a possibilidade de saber o que nos vai acontecer, mas temos o Poder de reagir a cada situação com sabedoria, paz e a certeza de que cada experiência é um degrau para a nossa evolução. Porque o poder está na integração: Aceitar que o que vem de fora pode melhorar o que está dentro. E o que vem de dentro altera o que está fora. O verdadeiro poder reside em si. Já lá está. É seu.

 

Sara Almeida

 

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13.1.16

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Há precisamente onze anos, propus aprender a Amar-me. Quis muito acreditar que eu, assim como todos aqueles que gravitavam no meu universo, merecia o meu amor, o meu carinho e a minha atenção. Não sabia bem como fazê-lo, como alterar um registo viciado que alimentei (com a “melhor das intenções”, sempre por um “bem maior”), na exigência dos dias e dos outros: como dizer que estava cansada sem me sentir negligente, como dormir sem medo que o mundo pudesse desabar, como expressar vontades sem me sentir culpada, ou responsável, por tudo o que se passava à minha volta. Queria elevar-me e enraizar, dar passos mais seguros, mais serenos, com mais sentido, sem viver em permanente estado de alerta. Queria abraçar o mundo e os outros mas sem fantasmas e sem feridas. Não queria o salto narcísico que me colocasse num pedestal olímpico, de egoísmo e isolamento; mas desejava enamorar-me, perdidamente, de mim própria.

 

Ao longo de todo este tempo concluí que era, simplesmente, a tarefa mais difícil da minha vida. Constatei que, ainda que parecesse que eu escutava as minhas necessidades, na realidade, limitava-me a dar-lhes um paliativo quando o limite se fazia sentir; uma dose de energia suficiente para as calar, por mais algum tempo. Negligenciei os gritos de alerta, da alma e do corpo, até estes me estenderem ao comprido. Claramente, eu não estava num relacionamento sério com a minha pessoa e ela sucumbiu, perante os meus olhos, por falta de cuidados adequados. Dei voz a todos os que me feriram mas desalojei-os, da alma e do coração, um atrás do outro, até me sentir mais leve, mais forte, mais atenta em mim. Apenas em mim e no espaço que agora deixavam e que se inundava de paz.

 

A ti, ser que me gerou, a quem sempre supliquei migalhas, na expetativa de um amor que nunca encontrou eco; abraço-te hoje no perdão, com humildade. Não fujas dos meus braços nem rias, assim, desconfiada. Não sabes como é difícil abraçar alguém que amamos e que nos rejeita. Não aguardes no compasso de quem espera uma investida de um inimigo sem honra, antes de me reduzires a nada. Não quero mais essas guerras em que nos sabemos ferir, no mais fundo de nós, com o mais negro em nós. Escolho não lutar contigo, embora me tenhas ensinado a fazê-lo com mestria. Quero que saibas que continuo a amar-te, e que sempre to vou lembrar, mas já não espero que me ames de volta. Não numa medida que talvez seja só minha, e tu a sintas injusta e sem sentido. Mas também não posso continuar a olhar-te nos olhos e sentir-me sempre tão pequena, na amplitude castradora da tua fé. Preciso da paz que me saibas dar e de me libertar do jugo em que me permiti viver contigo, em nome do “amor”, enquanto me fazias sentir o pior dos teus castigos. Aceito-o, aceita-o também. Quem sabe, um dia, as pontes que queimamos, permitam novas pontes entre nós. E o “amor” possa ser Amor, sem aspas ou cobranças. Inteiro. Pleno. Quem sabe...

 

A ti, que me chamaste alma gémea enquanto me partias o coração, lenta e insidiosamente; encontra a tua paz e/ou vive na tua loucura, mas não sujes as minhas. Não, não mereces o meu perdão mas eu mereço não ser parte dessa história sórdida, a que chamas existir. Sinto-me tão orgulhosa por ter sabido amar-te na totalidade. Com tudo de mim. Mesmo sem o mereceres. Nenhuma parcela de dor, ainda por digerir, me tolda a alegria de continuar a acreditar, com cada uma das minhas células, no amor para lá do medo. Sobretudo, depois de ti. Gratidão, pela preciosa lição de vida: também te confundi com uma alma gémea.

 

A ti, que me gritaste na cara (literalmente, na cara), durante anos, fazendo da minha jornada laboral uma epopeia digna de um documentário sobre tortura e chacina mental, aceita a tua imagem refratada. Reconhece-te nos teus erros e na falta, afinal, de tanto Amor. Agora que o teu eco já não me atormenta as noites e as incongruências, pergunto-me se dormes tranquila, na reprise dos teus momentos mais desumanos. Se a frustração te acalenta as noites ou se a culpa te serve de almofada. Deve ser muito difícil ser quem és.

 

A ti que, mesmo sem me conhecer, te sentiste no direito de me insultar, de me ferir. Sim, tu. Que gastaste tempo precioso da tua existência a poluir a minha. Não te odeio, tão pouco teço planos cinematográficos que te aniquilem. É possível que nem te conheça também. A minha própria existência é um mistério que me vai levar o resto da vida para desvendar e sei que vou falhar, tantas vezes. Não tenho tempo para envenenar a vida dos outros ou opinar sobre as suas decisões, cada um de nós trava as suas próprias batalhas. Tu pareces já saber tudo, sobre tudo e todos. Claramente, não precisas de ajuda extra: já és o teu pior inimigo.

 

A ti, que despedaçaste o meu espírito com o medo e a vergonha, enquanto me ensinavas o quanto o "amor doía" e como eu era, afinal, uma menina "muito malandra"; jamais poderei explicar-te algo que nunca sentiste. Nem quero. Algo que validas, orgulhosamente, na tua vil existência, num ciclo interminável de dor e desespero. A vida não te ensinou nada mas, a mim, tem-me ensinado muito. Não, já não tenho medo de ti mas não te quero por perto. Na minha paz, tu não existes. Não fazes parte do meu presente. Caminhar sem ti às costas, e debaixo da pele, tem tornado a jornada incrivelmente mais leve.

 

A ti, que há muitos anos atrás me nomeaste a tua "melhor amiga", enquanto defraudavas os mais belos capítulos dos meus sonhos tornados realidade, mostraste-me o que um amigo de verdade nunca faria. Ensinaste-me que, apesar do meu amor pelas palavras e pelas pessoas, o meu léxico emocional estava claramente deturpado e que, ser Amigo, era algo extraordinariamente diferente, feito de camadas coesas, sustentado na lealdade e no amor. E que existe. Que a amizade verdadeira é esse amor, num estado tão puro e tão sublime que não pode ser comparado a coisa nenhuma. O que eu teria perdido se não tivesse aprendido tudo isto contigo.

 

A ti, que me sugaste a energia com a tua mera presença, que te impuseste inteira, egoísta, vezes sem conta; mesmo quando eu não conseguia tomar conta de mim própria e dizer não. “Tudo eu. Tudo eu. E…”, sim, diz que o mundo é mau, que tudo te acontece, que há um complô mundial contra ti. Tens direito à militância obtusa que te mantém no desespero crónico. Se podes ficar aí? Podes. Fica aí, o tempo que precisares. Mas já não me arrastas contigo para esse buraco a que chamas vida. Não sou responsável pelas tuas escolhas. Fui, sem culpa, olha para mim. Já nem te oiço.

 

A ti, que disseste que eu não era capaz, que nunca seria capaz, que me feriste de mil maneiras diferentes; quero que saibas que as minhas cicatrizes já não doem por dentro. Quero que saibas que já não me manchas a alma, que já não me sinto suja, mesmo nas rasteiras da memória que ainda não consigo evitar. Aceito-as e deixo-as partir. Uma de cada vez. Lentamente, sei que sou capaz. Por isso não te instales, nem limpes os pés na minha dignidade, só porque a mediocridade é uma língua que dominas. As minhas cicatrizes lembram-me que te sobrevivi. Lembram-me que não sou o que de mim levaste. Sou aquilo que não conheces. Sou tudo o que não foste capaz, sequer, de beliscar.

 

A todos vós, que gravitaram sobre mim e dentro de cada uma das minhas células, durante décadas, podeis partir. Já não vos quero. Retiro-vos o poder, que alimentei durante demasiado tempo, de envenenarem a minha existência com a vossa mesquinhez e as vossas frustrações. Hoje, olho-vos a todos na cara, sem medo, pela primeira vez: sois tão patéticos sem a minha força. Fui tão cega durante tanto tempo... Olhai bem para mim agora! Não sou o que resta de vós! Sou mais, sou eu, sou aquela que se ergue acima e perante vós, que renasce do vosso lodo, com a alma em expansão. Por isso, quando eu vos voltar as costas, não se atrevam a seguir-me. Não existe nada em mim que vos deseje.

 

Gritei tudo isto. Dancei tudo isto. Caminhei tudo isto. Escrevi tudo isto. Chorei, continuo a chorar, parte disto. Mas já consigo respirar fundo no abraço que aprendi a dar-me. Já consigo ver mais longe, dentro de mim. Quando tudo parece estar a desmoronar, as peças da minha verdadeira essência começam a encaixar-se e a dar novas cores aos dias e aos sonhos. Sinto-me renascer da mágoa deixada para trás, sinto-me crescer no poder que reclamo para mim. A jornada será longa e cheia de desafios, estou certa, mas pretendo vivê-la na plenitude que me liberta dos antigos cativeiros. Quero descobrir quem sou, com uma lente tão clara quanto o que em mim emerge da dor. Quero apaixonar-me por mim própria, quero cuidar-me, quero muito proteger a minha alma de tudo o que me possa magoar. Todos os dias.

Hoje, perdoo-me pelos meus erros. Afinal, ninguém me fez tanto mal quanto eu fiz a mim própria. Não vou entender tudo mas está tudo bem. Está tudo bem. Vai tudo ficar bem. Aceito-me como Sou. Sou digna de Amor. Sou Amor. Sou Imensa.

 

Alexandra Vaz

 

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11.1.16

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Foto: Yellow Rose Flower – Kevin Casper

 

No princípio era o Verbo.

Penso, logo existo. Existo logo penso.

Eu penso assim, tu pensas assado, ela de outra maneira, aqueloutro de forma parecida, mais outra pensa quase que o oposto.

Há tempo de pensar e há tempo de agir. Como é que se fazem as sínteses desta miríade de pensamentos e posições?

 

Pode ser a família, o clã, a aldeia, a sociedade em geral, o estado, mesmo as relações entre os estados. Pode ser, tão só, o condomínio do prédio onde habito.

No âmbito de todas estas entidades, organizações, é preciso, para que existam, que sejam saudáveis, se mantenham e evoluam, tomar decisões, atitudes, fazer coisas. Mandá-las fazer. Quem é que pode mandar fazer? Quem tem autoridade para tal? Quem tem o poder, o mandato para o exercer. Se tal figura não existir, as discussões serão intermináveis, não haverá decisões ou ninguém as cumprirá, não se faz o que é preciso ser feito. É o marasmo, a estagnação; será o risco de, mais tarde do que cedo, provavelmente de forma violenta, o poder ser tomado, espezinhando tudo à volta.

Há, portanto, muitas formas de pensar, de ver o mundo, uma multiplicidade de caminhos que podem ser seguidos. Isto é basilar, nunca pode ser esquecido, faz parte da individualidade de cada um de nós. Há, em simultâneo, a necessidade imperiosa (palavra adequada à circunstância) da existência da autoridade.

A história da vida organizada do Homem demonstra que não há qualquer incompatibilidade aqui. O poder, a autoridade, não são eternos, não podem ser absolutos, não são universais. Tal tem vindo a ser demonstrado e refinado há milénios de diversas maneiras, nas diversas culturas, por diversos caminhos.

 

No mundo ideal o poder e o contrapoder alimentam-se mutuamente. A autoridade vai buscar à oposição ideias diferentes, frescas, complementos fundamentais na maneira de olhar para a realidade. A oposição não existe para anular o poder, sim para o controlar, melhorando-o, impedindo a sua corrupção, para que, quando o substituir, melhor o possa exercer. A autoridade estará alicerçada na vontade da maioria, por tempo limitado, defendendo-a, mas não anulando, nem ignorando quem pensa de maneira diferente.

Onde se lê a autoridade, o poder, deverá entender-se a sua pluralidade, a sua diversidade, complementaridade. Há o poder de estabelecer regras, de executar de acordo com essas regras, de julgar o cumprimento dessas regras.

E não, embora possa parecer, o poder, o contrapoder, a diversidade nas opiniões e na sua aplicação, não servem só para a política, a organização do estado. Lembremo-nos da moda, dos clubes, da(s) religião(ões), tudo baseado na aceitação do indivíduo e nas suas diferenças; na aceitação da sociedade e na bondade da sua organização.

 

Se todos gostássemos da mesma cor o que seria do amarelo?...

 

Jorge Saraiva

 

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8.1.16

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Foto: Friends – Lisa Runnels

 

Todos nós, em algum (ou vários) momento na vida, desejamos poder voltar atrás, mudar algo que fizemos, ou não fizemos, ou dissemos, ou calámos. Uma escolha, ou várias escolhas, que fizeram a vida tomar o rumo que tomou. Penso muitas vezes nisso, no voltar atrás.

Se existisse uma máquina do tempo… o que é que eu mudaria? Tudo, quase tudo, uma coisa de nada… depende dos momentos. Mas ultimamente… e quando digo ultimamente, refiro-me a alguns e significativos meses, penso que fiz algumas más escolhas. E se pudesse voltar atrás… sim, sem dúvida que era algo a corrigir.

Não, não ia atrás daquele amor que se perdeu num fim de tarde de setembro. Nem ia àquele domingo chuvoso de eleições em que um anormal me fez um comentário humilhante, para lhe dar a resposta que, alguns minutos depois, se delineou na minha cabeça.

 

Se eu pudesse voltar atrás, iria àquele período fundamental da minha vida em que escolhi os meus amigos/as. E escolhia outros. Escolhia uns amigos daqueles que são para sempre, todos os dias do ano. E que ligassem ou aparecessem mais vezes por ano para além do Natal. Amigos que estivessem interessados em ouvir e falar, em partilhar e conviver. Uns amigos assim com um ombro disponível para me acolher e que corressem para o meu ombro (aliás, tenho 2!) quando também precisassem.

Amigos verdadeiros, daqueles a quem se pode ver, tocar, ouvir, e não aqueles que “Gostam”, “Partilham” e “Comentam”.

Porque os amigos fazem falta. Tanta falta.

Se calhar, vou pôr um anúncio nos Classificados: “Pessoa muito amiga do seu amigo, procura um amigo de quem possa ser amiga.”

 

Sandrapep

 

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6.1.16

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Foto: Daydreaming – Vera Kratochvil

 

Se há palavra de que não gosto é da palavra “poder” quando é utilizada no sentido de ter o direito de mandar e desmandar em tudo apenas porque se é um ser superior, por qualquer motivo menos ético.

 

No entanto, se há palavra de que gosto é da palavra “poder” quando a utilizamos no sentido de conseguir força e coragem para alcançar os nossos objetivos sem passar por cima de ninguém, sem ter a necessidade de nos sentirmos mais que os outros.

 

Quando estou perante alguém que se sente mais e melhor que os outros chego a ter pena dessa pessoa pois dá-me a sensação de que passou por algo que a forçou a ganhar esse poder de defesa do mundo cruel em que vivemos. Ganhou a capacidade de criar em sua volta uma couraça que a faz sentir bem e só o consegue valorizando-se mais a si e desvalorizando os outros.

 

Já o poder interior que o eleva a um estado de bem-estar consigo próprio, com os outros e com o mundo que o rodeia é algo tão mais raro de alcançar.

Gostaria de ter esse poder um dia…

Poder acordar e sentir-me bem apenas porque acordei…

Poder trabalhar apenas porque gosto mesmo do que faço…

Poder brincar apenas porque nos faz sentir bem e mais próximo dos outros…

Poder rir e sorrir em qualquer lugar apenas porque sim…

Poder chorar quando a tristeza chega sem medo da sua chegada…

Poder amar e dizê-lo sem medo de nada nem de ninguém…

Poder tanta coisa e mais coisas ainda…

Poder adormecer com a cabeça tranquila…

 

Alguns desses poderes já alcancei, felizmente!

E o mais importante deles todos é mesmo o poder de ter consciência de mim e daquilo que alcancei e sentir-me feliz e realizada por isso, sem ser preciso complicar mais a vida querendo mais e mais…

Poder ser feliz apenas e poder ter esse objetivo como o principal, acordando e adormecendo todos os dias.

 

Sónia Abrantes

 

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4.1.16

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Não nos víamos há alguns anos. Quando terminámos o curso, ele um distinto aluno, resolveu deixar o país para se especializar no estrangeiro. Estivemos sempre em contacto através das redes sociais mas este encontro era importante para os dois, queríamos lembrar o passado, rir das partidas e brincadeiras de estudante, recordar alguns colegas e falar dos nossos inocentes casos amorosos. Queríamos matar saudades. Quando nos encontrámos no café onde outrora costumávamos estudar, reconheci naquele homem maduro e com ar de bem-sucedido, o meu jovem amigo de outros tempos. O seu sorriso franco foi um convite ao abraço que só os bons amigos sabem tornar tão especial. O diálogo surgiu de forma pouco organizada, queríamos saber tudo o que aconteceu nestes anos mas as perguntas não saíam em sequência, atropelavam-se e estávamos demasiado felizes para conseguir organizar as ideias. A propósito da sua aparência, de quem se tem dado bem na vida, e certa de que seria compreendida, disse a certa altura:

- O poder sempre me atraiu.

- Não precisas de te defender dessa afirmação mas gostava que ma explicasses. O que tanto te atrai no poder? Perguntou-me ele.

Confesso que não estava a contar dar explicações sobre os meus gostos e principalmente sobre frases inconsequentes proferidas no meio de uma conversa de circunstância. E assim, desprevenida, nada me ocorria que justificasse a minha tendência. Mas ele parecia não querer deixar esta conversa pela rama e acudiu tentando clarificar o conceito:

- Mas a que poder te referes? O poder adquirido que te chega através de cargos institucionais e que te torna respeitável perante os outros, o poder que o dinheiro dá, ou outro qualquer que te eleva acima dos teus semelhantes?

- Não, não é bem esse o poder que almejo e, colocada assim a questão, quase que me sinto ofendida. Não quero ter poder por aquilo que faço ou por o que posso adquirir. Tartamudeei, arrependida de ter levado a conversa para esse campo. Definitivamente, não é mesmo nada esse o poder que me deslumbra, mas também não consigo explicar o que há no poder e que tanto me atrai.

 

O silêncio caiu e como uma rede arrastou os sentimentos presentes no início do encontro.

Permanecemos sentados sem que qualquer um de nós fizesse um gesto para abandonar o lugar. Senti-me constrangida, não sabia o que fazia ali, nem mesmo se queria ali estar, mas a verdade é que não tomava a iniciativa de me despedir. Procurei algo que me chamasse a atenção e desviasse o olhar para fora do pequeno círculo povoado pelos dois, mas o meu interesse estava ali e o meu olhar recuou novamente para a mesa do café. Observei-o pelo canto do olho. Vi-o, cabeça baixa mexendo o café com ar pensativo. Reconheço-lhe a atitude de alheamento e a capacidade de se isolar em público para melhor pensar. Não sei o que dirá quando saltar de novo para o nosso encontro mas, se bem me lembro e ele não mudou, terá algo a dizer e eu vou gostar de ouvir.

Sorveu um gole de café, saboreou-o e com a maior das calmas e simplicidade, disse:

- Sabes, eu acho que o poder não nos é dado nem o podemos adquirir com cargos importantes ou dinheiro. De nada serve estarmos investidos de poder se não o soubermos exercer, e poucos sabem exercê-lo na medida e na força certa, facilmente resvalam para situações de medo e de humilhação. O poder, penso que está em nós, só precisamos de ser suficientemente humildes para nos despojarmos de falsas ideias a nosso respeito e a respeito da realidade, isto é, se vivemos a pensar que estamos acima dos outros e que a realidade é como nós a entendemos e queremos que ela seja, então nunca seremos poderosos e a única coisa que temos é adversários. Mas se, pelo contrário, conseguirmos olhar para fora de nós com humildade, então seremos poderosos porque temos o essencial, temos tudo.

Voltava a olhá-lo de frente. Lembrei-me de quanto o admirávamos quer pelo seu saber e conhecimento, quer pela disponibilidade como respondia aos nossos pedidos de tirar dúvidas, tarefa a que se entregava sem a superioridade que o saber vulgarmente confere, antes, aproveitando a oportunidade para ele próprio questionar e aprofundar as matérias.

E descobri fascinada que o que realmente me atrai no poder é a humildade com que é exercido.

 

Cidália Carvalho

 

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1.1.16

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Foto: Baby Incubator – Isabel Vanzieleghem

 

Testemunho, com alguma frequência, pessoas a vivenciarem uma transição de saúde-doença. Se por um lado a doença assusta, destruindo caminhos já muito determinados e formas de lidar com acontecimentos da vida, por outro, pode levar a que as pessoas acionam a sua criatividade para lidarem com ela. É o poder criativo da doença. Descobrem-se poderes latentes, nunca previstos, e a vida transforma-se num modo inimaginável. Oliver Sackes, no seu livro Um antropólogo em marte, chama-lhe o “paradoxo da doença”. Estas pessoas que acionam a criatividade fazem e refazem, pensam e repensam, formulam e reformulam vezes sem conta. Não sei se se surpreendem com elas próprias, mas sinto que surpreendem os outros. Reaprenderam a viver; agora vivem com a sua doença.

 

Testemunho com alguma frequência pessoas que passam a cuidar de outras em situações difíceis e vivenciam também, por isso, uma transição. Da mesma forma, cuidar de alguém em situações difíceis pode, por um lado, destruir caminhos de quem cuida e, por outro, pode fazer com que o cuidador acione a sua criatividade para cuidar. É o poder criativo e, da mesma forma, paradoxal do cuidador, diga-se, cuidador informal; o cuidador familiar. Estes cuidadores que cuidam de pessoas em situações difíceis, fazem e refazem, pensam e repensam, formulam e reformulam vezes sem conta. Os que vão observando “de fora” questionam como se consegue tal desempenho. Não sei se estes cuidadores têm tempo para se surpreenderem, mas sinto que surpreendem os outros. Reaprenderam a viver; agora vivem com os seu(s) doente(s); com o(s) seu(s) familiar(es).

 

William Osler (Sackes, 1995) diz: “Não pergunte que doença a pessoa tem, mas antes que pessoa a doença tem”. E, porque o cuidador tem o poder de poder ajudar, eu diria “Não pergunte que doente o cuidador tem, mas que cuidador o doente tem”.

 

Ermelinda Macedo

 

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