30.6.14

Damas em Giverny, Washington Maguetas

 

O encontro das duas acontece todos os dias, todos sem exceção, sempre no mesmo lugar, sempre à mesma hora, sempre com a mesma duração, um ritual eterno que ninguém sabe como começou, nem porque acontece, nem se algum dia terminará. Talvez termine quando já não houver mais pessoas, quando não houver mais mundo. Mas para já é assim. Durante o encontro as duas irmãs, que são inseparáveis, demandam uma da outra, contam pequenos episódios que as tocaram por uma qualquer razão, apoiam-se uma à outra. E depois partem, cada uma para a sua tarefa, imperturbáveis, incansáveis, eternamente laboriosas.

No encontro daquele dia, Vida chegou primeiro. Aproveitou a espera pela irmã e sentou-se um pouco, a descansar. Quando Morte chegou a irmã olhou-a e viu-a cansada e triste. Morte por vezes ficava assim, com o coração tão cheio de tristeza que só lhe apetecia morrer. Mas a morte estava-lhe interdita. Era nesses momentos que Morte invejava os homens e as mulheres, pois estes podem morrer, aliás morrem mesmo.

- Que tens? Que aconteceu? – perguntou Vida, sem se levantar. Morte sentou-se ao seu lado.

- O mesmo de sempre, cada vez mais. – e com isto Morte deixou cair a cabeça para a frente. Vida pousou a mão na cabeça da irmã gémea, acarinhou-a e perguntou:

- Continuas a sentir-te ignorada!...

- Ignorada, esquecida, indesejada, detestada. – confirmou Morte. E continuou:

- O que os homens e as mulheres inventam, o que eles fazem para não pensarem em mim, para não se prepararem para a minha chegada, para a minha presença.

Ficou apenas o silêncio e a mão esquerda de Vida a afagar os cabelos de Morte com compreensão e com ternura. Alguns minutos depois, poucos, pois estes encontros são sempre muito breves, Morte disse:

- Preparam-se para tanta coisa durante as suas vidas, mas nunca se preparam para me receber, para conviverem comigo. Sabem que eu ando sempre por aqui, que faço parte da vida deles, mas desprezam-me. E depois, quando eu chego, quando eu estou por perto, ficam surpresos, entram em choque, tentam fugir – como se fosse possível fugir de nós duas.

Vida suspirou, um tanto entristecida pela sina de sua irmã. Sabia que Morte tinha razão, que as pessoas a ignoram ostensivamente – observava-o permanentemente e era injusto. Mas, paradoxalmente, não ignoravam Morte para se entregarem completamente a Vida. Antigamente não era tanto assim. Antigamente as pessoas ligavam-se mais a Vida e sabiam estar com Morte, ao pé dela, a conviverem com ela. Agora não são tão chegadas a Vida, e desprezam Morte. Vida também tinha os seus momentos de tristeza, quando a sua consciência era ferida pela distância das pessoas. Mas hoje estava serena e bem-disposta. Ainda bem que assim era para poder aconchegar a irmã. Morte continuou:

- E o que sofrem com isso!... O medo, a ansiedade de que padecem. Hoje em dia, algumas pessoas estão incapazes de lidar com uma perda, com alguém que eu tenha de retirar de junto delas. Revelam uma incompreensão total sobre o mecanismo essencial da sua vida, sobre a nossa existência, sobre o nosso papel. Fico com o coração despedaçado por os ver assim sofrer. O sofrimento existe e anda por aqui para ser experimentado, mas este sofrimento, assim, resulta da incompreensão, da não-aceitação, da fuga, da não preparação. As pessoas deveriam simplificar, voltar ao que é essencial, perceber a vida e a morte, aceitar, viver plenamente. Deveriam preparar-se, Vida, deveriam preparar-se, para lidar bem contigo e para lidar bem comigo.

Vida sorriu. Sempre achou a sua irmã gémea um tanto idealista. Parou de aconchegar os cabelos da irmã. Tocou-lhe no ombro com carinho e disse-lhe baixinho:

- Vamos lá, mana, as pessoas precisam de nós. E prometo que um dia destes, deixo que troques comigo.

Riram com malandrice. Levantaram-se, abraçaram-se, e partiram, cada uma para seu lado.

 

Fernando Couto

 

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