13.6.14

 

Deste lado do paraíso, só eu conheço a verdade. Na despedida de ti, no desprender que o tempo vai agudizando, vivo entre o que existiu, o que existe agora e o vazio que ainda preenche o lugar do futuro. Salto de lembrança em lembrança, da respiração serena à ansiedade insuportável. Do sonho ao pesadelo. Do medo ao acreditar. Fazer-te o luto significa perder-te enquanto ainda aqui estás. Significa caminhar sem ti ao meu lado mas dentro de mim. Há dias em que choro, há outros em que gostava de conseguir chorar. Há dias em que sei que a vida continua, há outros em que me apetece mandar tudo às urtigas e perder-me na minha dor. Custa passar do tudo ao quase nada. Custa ter a fasquia da alma gémea e, ainda assim, saber que é preciso sair de cena. Não me dói o que vivemos juntos, doí-me não saber o que faço com isso tudo agora. Doem-me os sonhos que ficaram pelo caminho tortuoso da minha própria ingenuidade. Crescer é uma coisa que ainda não entendi mas precisei de ti na minha vida, vê tu bem, para finalmente por a cabeça no seu devido lugar e perceber tanta coisa. Tanta energia despendida em estradas que já não me servem. Tanto sonho sem chão. Tanto chão sem segurança. Tanto amor em saldo. Tanta coisa fugaz. Tanto passado que não chega a passar. Tanto presente envenenado. Tanto futuro com a cabeça a prémio. Tanta bagagem que nunca poderei partilhar. Vou demorar muito tempo a assimilar tanta abundância, mas sei que está na altura de reorganizar desejos e prioridades. Está na altura de tirar as fraldas ao coração e limpar os óculos à alma. Está na altura de crescer, seja lá o que isso for.

Mas não quero crescer e ficar uma chata de primeira, “always by the book”. Não quero ser um daqueles seres estranhos que esquece a beleza de se deitar num jardim, fechar os olhos e ficar ali assim, em silêncio, a ouvir a relva a crescer. Não quero crescer como se estivesse a cumprir uma sentença de morte, num processo que nos arranca as memórias viscerais e espontâneas, e nos faz viver dez metros abaixo de nada. Quero crescer mas sem matar a criança em mim, a alegre inconsequente que se deslumbra genuinamente por uma cabine telefónica das antigas, um pôr-do-sol de tirar a respiração, uma gargalhada cristalina. Quero crescer e fazer o luto da ingenuidade que me rouba outros sonhos; esses sim, merecedores da minha energia vital. Preciso desesperadamente de me resgatar de mim própria e ainda não consigo. Não agora, na pior fase de todas, enquanto protagonistas, tu e eu, da nossa opereta conjugal: já nada é o que foi um dia, mas também não é ainda o que terá que ser. Andamos a brincar aos médicos, a pôr pensos rápidos em feridas abertas, enquanto nos equilibramos num limbo de emoções que não me permite chorar-nos devidamente porque já não Somos mas ainda Estamos. É isto que me mata. É isto que retarda o meu anunciado luto. Preciso que ele se instale em mim de uma vez, que consuma todas as minhas lágrimas, que enxagúe todas as minhas emoções. Preciso que me leve ao desespero, num corte cirúrgico, e não me deixe nesta agonia prolongada. Quero perceber exatamente quantos buracos isto vai deixar na minha alma. Quero contá-los um a um e quando já não doeres em mim, vou deixar a luz entrar por cada um deles e enchê-los de novas cores.

Mas agora, neste instante em que escrevo estas linhas, preciso mesmo é de te chorar. Preciso de esquecer os sonhos que nunca realizaremos juntos para poder aceitar dentro de mim que, talvez um dia, os possamos viver com outras pessoas. Preciso que o meu luto envolva a minha solidão no seu casaco e a leve consigo na saída. Tenho tantas saudades da paz absoluta em mim. Tenho tantas saudades da alma, com cicatrizes, sim, mas sem úlceras de pressão. Tenho saudades da solidão em que nunca me sinto só. Abomino esta solidão acompanhada, que dura enquanto as coisas morrem lentamente dentro de nós, mas em que não estamos verdadeiramente sós: estamos vazios. Todos os dias, perdendo mais um pouco de nós.

Um dia destes, sentada no jardim, no meio da Praça, perdida neste processo, esbarra em mim a Maria. Olha-me de cima a baixo e, do alto da sua apregoada clarividência, diz: “É que nem preciso de te perguntar nada… Incrível… Como tu estás...” Senti-me despida até ao tutano, certa de que ela tinha lido cada um dos meus pensamentos e ia agora dissertar sobre o fim do amor e o princípio de outro sonho qualquer, blá blá blá, blá blá blá. Olhou-me fixamente nos olhos. Retorqui, “Ai sim? E o que te dizem os meus olhos?”. Responde-me ela, carregadinha de certezas, e um sorriso de orelha a orelha, “Tu. Finalmente, tu! O amor! A paixão! A felicidade! É que não enganas ninguém! E sempre tão colorida! Quem anda triste e amargurado, até na roupa se adivinha. E tu… é que nem preciso do meu dom, rapariga, tu irradias felicidade!”. Incrédula, esbocei o meu melhor sorriso e suspirei de alívio. Quem era eu para a contrariar? Na verdade, poupou-me a trabalheira de uma conversa que eu ainda não quero ter.

Deste lado do paraíso, morre lentamente um sonho, todos os dias. Mas como nunca me visto de preto, ninguém imagina o peso do teu luto dentro de mim. Nem mesmo tu.

 

Alexandra Vaz

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 06:00  Comentar

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