11.8.13

 

O calendário mostrava, para quem para ele olhasse, que a década era a de 60 (do século XX). E naquele tempo não havia enganos, as férias grandes eram mesmo como o nome indicava: Grandes! Começavam mesmo no meio do mês de junho e só terminavam quando o mês de setembro partia. Eram três meses e meio bem recheados de descanso e de cansaço, de brincadeiras, de atrevimento e de aprendizagem, nas atividades de rua com os outros miúdos. Até fartar, até esquecer o conceito de escola. Os pais não queriam obsessivamente encaixar os filhos em qualquer lugar, para poderem ir tranquilamente para a sua vida; conseguiam andar tranquilos, mesmo com os filhos ao pé. As mães estavam em casa a tratar da família. Não existia o conceito de ocupação de tempos livres, pois o tempo livre não era assim como que um defeito que era necessário ocupar, mas sim uma realidade boa, para ser vivida e desfrutada por todos. E no Porto daquele tempo, as crianças encontravam-se na rua, brincavam na rua, brigavam na rua, partiam ossos na rua, aprendiam no convívio e nos desafios da rua, nos riscos da rua, a serem adultos.

E no meio de todo aquele consolo de viver umas férias imensas, intensas de despreocupação, encaixavam-se duas semanas de ida à praia, para a Foz, para o Castelo do Queijo, ou para Matosinhos. O início dessa função era, para o João, a pior parte: tinha de ir ao médico, a uma consulta, para que ele visse se o João estava em boa condição física para aguentar a ida a banhos. Estava sempre em excelente condição; para quê aquele ritual? Certamente por muita preocupação de mãe… Atestada cientificamente a sua habilitação para as brincadeiras de praia, começava o ciclo das rotinas diárias.

A praia era para ser desfrutada bem cedo, quando havia mais iodo e o sol não impedia de pisar a areia, sinal de que era hora de partir. O João nasceu com um gene que não gosta de dormir e por isso sempre lutou para nunca adormecer, ou, na prática, adormecia apenas quando o corpo já não aguentava nem mais um esforço. Por isso, levantar às 7 horas da manhã era algo que só acontecia porque a mãe o retirava da cama. Do que acontecia durante a hora seguinte, tinha apenas uma ideia, por alguma imagem que teimava em entrar-lhe no cérebro, ou de ouvir a mãe contar. Ao que parece, aconteciam nessa hora alguns atos que tinham a ver com higiene pessoal, e com vestir-se, depois era o preparar da merenda, para ser devorada ao meio da manhã, sempre com o sabor a pouco (que a brincadeira na praia sempre deu muita mais fome do que na rua), sair para a rua em direção ao Marquês para o autocarro, o 20 ou o 21, em direção à Boavista, atravessar a rotunda até junto à remise e entrar no elétrico, o 17, o 18, ou o 19, em direção ao mar. Quando entrava no elétrico, por magia, o cérebro do João ligava-se; a partir daí a sua atividade era consciente. A próxima meia hora era o melhor do dia e da sua vida. Adorava os elétricos, em especial aqueles que tinham portas de fechar e eram fechados nos extremos, como o 364, como os carros. A mãe a e a irmã do João entravam no elétrico e dirigiam-se aos lugares sentados. O João, logo que sentia o cheiro do elétrico acordava, entrava nele pela porta de trás (como era regra naquele tempo), e dirigia-se, como um raio, à plataforma da frente, para se colocar ao lado do guarda-freio. A mãe que tratasse do bilhete com o condutor… E ali, de pé no seu posto, como se fosse um guarda-freio suplente, com a aragem da manhã a acariciar-lhe a cara, sonhava conduzir todos aqueles passageiros, naquela máquina, até à praia, pela Avenida da Boavista abaixo. A sua parte preferida começava quando as linhas nos dois sentidos se chegavam uma à outra no centro da avenida, sem se tocarem, o que acontecia a partir da Fonte da Moura. Dali em diante, a viagem decorria a maior velocidade, entre as paredes laterias feitas de plátanos. Quando cruzavam um elétrico que subia no sentido contrário, por instantes bem juntinhos, lado a lado, era um êxtase. E a partir de certa altura, o elétrico era inundado pelo cheiro do mar.

Pelas 8 e meia estava a pisar a areia e a partir daí já se sabe, era o banho no mar, as brincadeiras na areia, essas coisas menos interessantes. Mas na cabeça do João estava já a expetativa da viagem de regresso, no elétrico.

No regresso, a emoção não era tanta, pois o cansaço sobrepunha-se-lhe. Na rotunda, abandonava o elétrico já com saudades, atravessava penosamente o jardim, tolhido pelo cansaço, seguia no autocarro, que o adormecia embalando-o. Acordava pelo meio da tarde, ávido pelo lanche, sem perceber como chegara a casa e como é que o almoço lhe tinha ido parar ao seu estômago, como tinha sido digerido sem que desse conta. E acordava zangado. Sempre detestou as sestas, desde logo porque eram dormir, e depois, porque achava que sempre que acordava era um novo dia, e com uma sesta, um dia ficava feito em dois.

Já não há férias mesmo Grandes, com elétricos. É pena!

 

Fernando Couto


Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 06:00  Comentar

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